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Jus Civile #71

Última semana antes do recesso forense. Entre prazos que se encerram e decisões que ainda precisam ser tomadas, vale lembrar: finalizar bem também é técnica. Pegue seu café e boa leitura! 🦉☕
Institutos
Legitimação extraordinária
A regra geral do processo civil é simples e bem conhecida: somente pode demandar em juízo quem é titular do direito material afirmado. Trata-se da chamada legitimação ordinária, prevista implicitamente na estrutura do sistema processual. Todavia, o próprio ordenamento jurídico reconhece que, em determinadas situações, essa lógica não é suficiente para garantir tutela jurisdicional adequada. É nesse contexto que surge a legitimação extraordinária, prevista expressamente no Art. 18 do CPC.
De acordo com o dispositivo, “ninguém poderá pleitear direito alheio em nome próprio, salvo quando autorizado pelo ordenamento jurídico”. A legitimação extraordinária, portanto, constitui exceção legal à regra da titularidade, permitindo que alguém atue em nome próprio para defender direito material pertencente a terceiro. Não se trata de representação processual — o legitimado extraordinário é parte do processo, assume os ônus da sucumbência e pratica os atos processuais em nome próprio.
O instituto tem fundamento na necessidade de tutela adequada e eficiente, especialmente em situações que envolvem interesses coletivos, difusos, homogêneos ou relações jurídicas complexas. Por isso, a legitimação extraordinária não decorre da vontade das partes, mas exclusivamente de previsão legal expressa. Não é possível criá-la por contrato, procuração ou convenção processual.
Entre os exemplos mais relevantes de legitimação extraordinária no ordenamento brasileiro, destacam-se:
O Ministério Público, na defesa de interesses difusos, coletivos e individuais indisponíveis;
Os sindicatos, na defesa dos direitos e interesses da categoria (Art. 8º, III, da CF);
As associações, nas ações coletivas, quando preenchidos os requisitos legais;
O condômino, para defesa da coisa comum;
O espólio, representado pelo inventariante, na defesa de direitos patrimoniais do falecido.
Em todas essas hipóteses, o legitimado extraordinário atua sem ser titular do direito material, mas com autorização normativa suficiente para provocar a jurisdição. O resultado do processo, contudo, atinge diretamente o titular do direito substancial, produzindo efeitos materiais plenos. É importante distinguir a legitimação extraordinária da representação processual. Nesta, o representante atua em nome do titular do direito, que permanece como parte do processo. Na legitimação extraordinária, ocorre o oposto: o legitimado atua em nome próprio, e o titular do direito não integra formalmente a relação processual, embora seja diretamente afetado pelos efeitos da decisão.
A doutrina também diferencia a legitimação extraordinária exclusiva daquela concorrente. Na primeira, apenas o legitimado extraordinário pode ajuizar a ação; na segunda, tanto o titular do direito quanto o legitimado extraordinário possuem legitimidade para demandar, a depender da estratégia e da natureza da tutela buscada.
A jurisprudência do STJ é firme no sentido de que a legitimação extraordinária deve ser interpretada restritivamente, justamente por representar exceção à regra geral da legitimação ordinária. Ainda assim, quando presente, ela desempenha papel essencial na efetividade do processo, permitindo que direitos sejam protegidos mesmo quando o titular não pode, não quer ou não tem condições de demandar diretamente.
Em síntese, o instituto da legitimação extraordinária revela uma escolha consciente do legislador: priorizar a tutela do direito material em detrimento do formalismo da titularidade, sempre que isso se mostrar necessário para a realização da justiça. Compreendê-lo é essencial para identificar quem pode — e quem não pode — estar legitimado a provocar a jurisdição em nome próprio, ainda que defendendo direito alheio.
Latim jurídico
Factum principis
A expressão factum principis refere-se ao ato do Poder Público que, embora lícito e geral, interfere de forma direta na execução de uma relação jurídica privada, tornando-a excessivamente onerosa ou inviável para uma das partes. No Direito Civil e Administrativo, a noção é invocada para explicar situações em que o cumprimento da obrigação é afetado por uma decisão estatal superveniente, estranha à vontade dos contratantes.
Diferentemente do caso fortuito ou da força maior, o factum principis tem origem em ato estatal normativo ou administrativo, como leis, decretos ou ordens de autoridade, que repercutem sobre contratos em curso. A consequência jurídica pode ser a revisão do contrato, a suspensão de obrigações ou até a resolução, conforme o impacto e a repartição dos riscos assumidos.
📌 Exemplo prático: uma empresa firma contrato de locação comercial para explorar atividade lícita em determinado imóvel. Meses depois, um decreto municipal proíbe o funcionamento daquele tipo de atividade em toda a região, por razões urbanísticas. Ainda que o contrato seja válido e o locatário não tenha dado causa ao inadimplemento, a execução torna-se impossível por ato do Estado. Nessa hipótese, configura-se o factum principis, legitimando a revisão ou a resolução do contrato, sem imputação de culpa ao particular afetado.
Atualidades
STJ afasta lucros cessantes baseados em dano hipotético e reforça exigência de probabilidade objetiva do lucro

Imagem: criação Jus Civile
A 3ª Turma do STJ reafirmou, em sede do julgamento do REsp 2.216.079, um limite essencial da responsabilidade civil ao decidir que a condenação por lucros cessantes não pode se basear em dano hipotético, sendo indispensável a demonstração de probabilidade objetiva de que o lucro seria efetivamente obtido caso o evento danoso não tivesse ocorrido. O entendimento foi firmado no julgamento que reduziu a indenização devida pela Redecard à Zolkin, em litígio envolvendo a tentativa frustrada de implementação de sistema de cashback em maquininhas de pagamento.
A controvérsia teve origem em contrato celebrado entre as empresas, pelo qual a Zolkin — pioneira em programas de benefícios e moeda digital ainda em 2010 — concedeu exclusividade tecnológica à Redecard para integração de sua solução às máquinas de pagamento, com prazo contratual de 90 dias para implementação. Em contrapartida, o plano de negócios projetava faturamento anual expressivo e previa vantagens estratégicas à Redecard, como opção de compra futura e controle tecnológico.
Na prática, entretanto, o projeto não avançou. Testes fracassaram, falhas técnicas se acumularam e o atraso superior a dois anos comprometeu a credibilidade da Zolkin no mercado. A ação judicial foi ajuizada por descumprimento contratual e conduta negligente. As instâncias ordinárias reconheceram a existência de parceria empresarial, e não simples prestação de serviços, e condenaram a Redecard ao pagamento de aproximadamente R$ 22 milhões, incluindo R$ 5 milhões a título de lucros cessantes, correspondentes à expectativa de faturamento em cinco anos.
Ao apreciar o recurso, a 3ª Turma do STJ afastou especificamente a condenação pelos lucros cessantes, reduzindo o valor da indenização para R$ 17,4 milhões. A relatora, Ministra Daniela Teixeira, foi enfática ao afirmar que o raciocínio adotado pelo TJ/SP implicava indenizar um dano meramente potencial, sem lastro concreto.
O voto destacou que o próprio Tribunal estadual reconheceu que a Zolkin possuía plano de negócios frágil, faturamento inexpressivo e histórico de prejuízos, mas, ainda assim, manteve a condenação por considerar haver uma “expectativa crescente de receita”. Para o STJ, essa lógica confunde expectativa com probabilidade jurídica.
À luz do Art. 402 do Código Civil, as perdas e danos abrangem não apenas o que o credor efetivamente perdeu, mas também aquilo que razoavelmente deixou de lucrar. A expressão “razoavelmente”, contudo, não autoriza a reparação de ganhos incertos ou conjecturais. Exige-se que o lucro não obtido decorra do curso normal das coisas, com base em elementos objetivos, histórico econômico consistente ou parâmetros minimamente verificáveis.
Nas palavras da relatora, condenar a Redecard ao pagamento de R$ 5 milhões com base em “projeção de faturamento” de empresa que não operava com receita positiva significaria indenizar um dano puramente hipotético, destituído de base concreta capaz de configurar lucros cessantes juridicamente indenizáveis.
O julgado reforça uma diretriz relevante, sobretudo em litígios empresariais envolvendo inovação, startups e modelos de negócio ainda não consolidados: o Judiciário não é garantidor do sucesso econômico do empreendimento. Ainda que haja inadimplemento contratual e culpa reconhecida, os lucros cessantes somente são devidos quando demonstrada probabilidade objetiva — e não mera esperança — de obtenção do lucro.
A decisão também sinaliza cautela diante de indenizações fundadas em business plans excessivamente otimistas, projeções de mercado não testadas ou expectativas descoladas da realidade financeira da empresa à época dos fatos. O risco do insucesso econômico permanece, como regra, inerente à atividade empresarial.
InovAção
Mapas mentais e infográficos como ferramentas de organização jurídica no NotebookLM
A organização da informação sempre foi um dos maiores desafios da prática jurídica. Processos longos, múltiplas peças, versões sucessivas de contratos, doutrina extensa e jurisprudência pulverizada exigem do advogado não apenas conhecimento técnico, mas também capacidade de estruturar, visualizar e relacionar dados complexos. Nesse contexto, o NotebookLM, ferramenta de inteligência artificial do Google, começa a chamar atenção no meio jurídico — especialmente por seus recursos de mapas mentais e infográficos automáticos.
Diferentemente de assistentes genéricos de IA, o NotebookLM foi concebido como um ambiente de estudo e análise a partir de fontes previamente selecionadas pelo usuário. O advogado pode carregar petições, contratos, decisões judiciais, artigos doutrinários ou relatórios, e a IA passa a trabalhar exclusivamente sobre esse material. Essa lógica é particularmente relevante para o Direito, pois reduz riscos de imprecisão e mantém a análise vinculada aos autos ou documentos efetivamente utilizados no caso.
Entre os recursos mais interessantes está a geração automática de mapas mentais. A partir de um conjunto de documentos, o NotebookLM consegue organizar conceitos, argumentos, fundamentos legais e conexões lógicas em estruturas visuais hierarquizadas. No mundo jurídico, isso se traduz em aplicações práticas claras: compreensão rápida de processos complexos, visualização de teses centrais e acessórias, organização de argumentos para peças longas e preparação estratégica para audiências ou sustentações orais.
Os mapas mentais também se mostram úteis no ambiente acadêmico e na formação jurídica. Estudantes podem estruturar disciplinas inteiras — como responsabilidade civil, contratos ou processo civil — em esquemas visuais que facilitam a memorização e a compreensão sistêmica dos institutos. Para quem atua na advocacia consultiva ou contenciosa estratégica, o recurso ajuda a enxergar o caso como um sistema, e não apenas como uma sucessão de documentos.
Outro diferencial relevante é a capacidade de gerar infográficos explicativos a partir dos textos analisados. O NotebookLM consegue transformar conteúdos densos em representações visuais que resumem fluxos procedimentais, etapas de um processo, relações contratuais ou cronologias fáticas. No contexto jurídico, esses infográficos podem ser usados tanto para uso interno — organização do raciocínio do advogado e da equipe — quanto para comunicação com clientes, tornando explicações mais claras e acessíveis.
Sob a ótica do visual law, trata-se de um avanço significativo. Embora o NotebookLM não tenha sido criado especificamente para o Direito, suas funcionalidades dialogam diretamente com a tendência de tornar o discurso jurídico mais compreensível, sem perda de rigor técnico. A visualização não substitui a fundamentação jurídica, mas auxilia na construção e no encadeamento do raciocínio.
Ainda assim, há limites importantes a considerar. Os mapas mentais e infográficos refletem a interpretação algorítmica do material fornecido, o que exige revisão crítica por parte do advogado. A ferramenta organiza e sintetiza, mas não decide relevância jurídica nem substitui o juízo técnico sobre quais argumentos devem ser priorizados. Além disso, como se trata de uma solução em nuvem, o uso deve observar cuidados com dados sensíveis e sigilo profissional, especialmente quando se trata de documentos de clientes ou processos em curso.
Em síntese, o NotebookLM não é uma ferramenta de produção de peças, mas de organização do pensamento. Seus recursos de mapas mentais e infográficos funcionam como um apoio cognitivo poderoso para quem lida com grande volume de informação e precisa transformar complexidade em clareza. Para o advogado contemporâneo, visualizar bem o problema pode ser o primeiro passo para resolvê-lo melhor — e é exatamente nesse ponto que o NotebookLM começa a se destacar.
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