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Jus Civile #70

A constância também é uma forma de excelência. No Direito e na rotina, não vence quem corre — vence quem sustenta o ritmo. 🦉☕
Institutos
Mandato aparente
O mandato aparente é um instituto que nasce da confluência entre a teoria do mandato e o princípio da proteção da confiança, derivado da boa-fé objetiva. Em essência, ele ocorre quando alguém, sem ter poderes reais de representação, pratica um ato jurídico em nome de outrem, mas o terceiro contratante acredita legitimamente que esses poderes existiam. Nessa hipótese, a lei e a jurisprudência protegem a aparência jurídica criada, impondo efeitos ao representado, ainda que o mandato seja inexistente ou irregular.
Embora o Código Civil não trate expressamente do mandato aparente, o instituto se apoia nos fundamentos gerais da boa-fé objetiva, e admite a responsabilidade do mandante pela aparência quando concorre com sua conduta para gerar confiança no terceiro. A lógica é simples: quem cria ou tolera a aparência deve suportar as consequências dela.
A configuração do mandato aparente exige três elementos:
Uma situação objetiva de aparência, na qual alguém atua como se fosse representante;
Boa-fé do terceiro, que acredita de forma razoável que os poderes existem;
Comportamento do suposto representado que, direta ou indiretamente, contribui para a formação dessa aparência.
Um exemplo clássico ocorre em ambientes empresariais: um gerente que negocia habitualmente com fornecedores, sem possuir formalmente poderes para assinar contratos, mas cujo comportamento é reiteradamente tolerado pela empresa. Se um terceiro, de boa-fé, firma um contrato acreditando que o gerente tem poderes, a empresa poderá ser vinculada pelo ato.
O STJ tem diversos precedentes reconhecendo o mandato aparente, especialmente em casos que envolvem bancos, administradores de empresas e prepostos que atuam como se fossem representantes oficiais. A Corte reitera que a confiança legítima do terceiro deve ser preservada, desde que não haja negligência na verificação da regularidade da representação.
O instituto cumpre função importante no mercado: evita que a parte que gerou a aparência utilize posteriormente a falta de poderes como argumento para se eximir de obrigações. Assim, protege a circulação econômica, reforça a segurança jurídica e penaliza comportamentos contraditórios (venire contra factum proprium).
Importa frisar que o mandato aparente não se aplica quando o terceiro age com imprudência, negligência ou má-fé, ignorando fatos que razoavelmente indicavam a ausência de poderes. A boa-fé não protege quem fecha os olhos para sinais de irregularidade.
Em síntese, o mandato aparente demonstra que, no Direito Civil, a aparência legítima pode ter tanta força quanto a realidade formal, desde que construída sobre bases objetivas e protegida pela boa-fé. O ordenamento premia o comportamento diligente e pune a quebra injustificada da confiança — afinal, a estabilidade das relações negociais depende tanto da forma quanto da aparência que a forma projeta.
Latim jurídico
Mora ex persona
A expressão mora ex persona designa a mora que depende de interpelação do credor, ou seja, aquela em que o devedor só é considerado em atraso após ser formalmente constituído em mora. Trata-se de regra aplicada às obrigações em que o vencimento não é automático ou determinado por data certa, exigindo manifestação do credor para que surjam os efeitos do inadimplemento.
O conceito está ligado ao Art. 397 do Código Civil, que distingue a mora automática (mora ex re) daquela dependente de interpelação (mora ex persona). Enquanto a primeira ocorre de pleno direito, a segunda exige notificação, protesto ou citação judicial — atos que tornam inequívoca a exigibilidade da prestação.
📌 Exemplo prático: um pintor é contratado para realizar uma obra “quando for solicitado pelo cliente”. Passados meses sem que o cliente o chame, não há mora. Mas, se o contratante o notifica formalmente para iniciar o trabalho e ele não comparece, configura-se a mora ex persona — pois o atraso só se caracteriza após a interpelação válida.
Atualidades
STJ fixa critérios para suspensão de passaporte, CNH e bloqueio de cartões na execução civil

Imagem: criação Jus Civile
A 2ª Seção do STJ concluiu, em julgamento unânime, o Tema 1.137 dos recursos repetitivos, fixando parâmetros objetivos para a utilização de medidas executivas atípicas, como suspensão de CNH, apreensão de passaporte e bloqueio de cartões de crédito, previstas no Art. 139, IV, do CPC.
O precedente consolida o entendimento de que essas medidas são constitucionais e válidas, mas devem ser aplicadas de forma subsidiária, proporcional e fundamentada, sempre com observância do contraditório.
O Tribunal aprovou o seguinte enunciado:
“Nas execuções civis submetidas exclusivamente ao Código de Processo Civil, a adoção judicial de meios executivos atípicos é cabível, desde que, cumulativamente, sejam ponderados os princípios da efetividade e da menor onerosidade do executado, seja realizada de modo prioritariamente subsidiário, a decisão contenha fundamentação adequada às especificidades do caso, e sejam observados os princípios do contraditório, da proporcionalidade e da razoabilidade, inclusive quanto à sua vigência temporal.”
A tese, portanto, afasta automatismos e reafirma que o magistrado pode adotar medidas coercitivas restritivas, mas somente após demonstrar:
A insuficiência dos meios típicos (penhora, pesquisa de bens, etc.);
A pertinência lógica da medida para estimular o adimplemento;
A necessidade e adequação diante do caso concreto;
A temporalidade da restrição;
O contraditório prévio.
O debate chegou ao STJ por meio de dois recursos especiais. No principal, um banco buscava suspender a CNH e o passaporte de um devedor, após inúmeras tentativas frustradas de localizar bens. O TJ/SP havia permitido apenas o bloqueio de cartões de crédito não relacionados à compra de alimentos, entendendo que a suspensão de documentos pessoais violaria proporcionalidade e razoabilidade.
O STJ, contudo, entendeu que a decisão estadual se baseou em fundamentação abstrata, que inviabilizaria a própria aplicação da medida prevista no CPC. A Corte determinou o retorno dos autos ao TJ/SP para novo julgamento, agora à luz dos critérios fixados no Tema 1.137.
No outro recurso (REsp 1.955.539), o STJ manteve a decisão que havia bloqueado cartões de crédito do devedor, por inexistir recurso da defesa — evitando reformatio in pejus.
A discussão processual foi enriquecida por manifestações qualificadas de amicus curiae:
IBDP (Instituto Brasileiro de Direito Processual): destacou riscos de banalização das medidas atípicas, defendendo contraditório efetivo, proporcionalidade rigorosa e prazos definidos, para evitar restrições indefinidas e preventivas sem justificativa concreta.
Febraban: sustentou que as medidas atípicas são plenamente constitucionais e integram o poder geral de efetivação do CPC, sendo essenciais em execuções inefetivas. Afirmou que não se trata de supressão de garantias fundamentais, mas de busca da efetividade processual.
FPPC (Fórum Permanente de Processualistas Civis): reforçou que as medidas são legítimas, desde que subsidiárias e proporcionais, podendo inclusive ser adotadas de ofício pelo magistrado, para preservar a autoridade das decisões judiciais.
O Ministro Marco Buzzi, relator, reafirmou que o CPC conferiu ao Judiciário amplos poderes para garantir a efetividade da execução, especialmente diante da crônica dificuldade de localização de bens. Para ele, medidas como suspensão de passaporte ou CNH não violam o direito de ir e vir, desde que não impeçam fisicamente o deslocamento — o que as distingue de medidas de natureza penal.
O relator enfatizou que as medidas devem ser aplicadas de forma excepcional, exigindo esgotamento dos meios típicos ou resistência injustificada do devedor, fundamentação específica, respeito ao contraditório, proporcionalidade, adequação e limitação temporal.
Houve discussão pontual sobre a inclusão de requisito adicional: “existam indícios de patrimônio expropriável do devedor”. A Ministra Isabel Gallotti defendeu a inclusão expressa desse critério, como salvaguarda contra uso punitivo das medidas em desfavor de pessoas sem recursos reais. A tese, porém, não incorporou tal requisito. A maioria (Buzzi, Raul Araújo e outros) entendeu que exigir indícios prévios de bens poderia neutralizar justamente a função das medidas, muitas vezes usadas quando o devedor oculta patrimônio. Assim, Gallotti restou vencida nesse ponto, e a tese final privilegiou a análise casuística do juiz, reforçando a subsidiariedade e a proporcionalidade como filtros suficientes.
O Tema 1.137 representa o mais importante precedente do STJ sobre medidas atípicas desde a entrada em vigor do CPC/2015.
InovAção
Consulta Nacional de Pessoas: o novo hub de dados do Judiciário brasileiro
O Conselho Nacional de Justiça acaba de lançar, no 19º Encontro Nacional do Poder Judiciário, a Consulta Nacional de Pessoas — uma ferramenta que centraliza informações sobre pessoas físicas e jurídicas para uso exclusivo de magistrados. Desenvolvida no contexto do Programa Justiça 4.0, em parceria com o Pnud, ela representa mais um passo na construção de um ecossistema digital integrado dentro do Judiciário.
A proposta é simples, mas ambiciosa: reunir, em um único ambiente, dados espalhados por dezenas de sistemas públicos e judiciais. A ferramenta conecta-se a bases como Receita Federal, Polícia Federal (incluindo Folha de Antecedentes Criminais), SEEU, sistemas de processo eletrônico e outros cadastros governamentais, permitindo que, em poucos segundos, o magistrado visualize informações completas de uma pessoa ou empresa — nomes, datas, endereços, telefones, vínculos e até relacionamentos processuais.
Trata-se de uma mudança estrutural para o trabalho judicial. Antes, a verificação de identidade, relações familiares, histórico processual ou antecedentes criminais exigia múltiplas buscas isoladas. Agora, tudo se concentra em um único painel, com velocidade e segurança ampliadas. Não é exagero dizer que o CNJ está aproximando o Judiciário de um padrão de inteligência integrada de dados, semelhante ao que já ocorre em sistemas de investigação financeira ou fiscal.
As magistradas que participaram da fase de testes destacaram justamente essa combinação de usabilidade e profundidade informacional. A ferramenta torna mais ágil a análise de vínculos relevantes, reduz erros de identificação e fortalece a tomada de decisão, sobretudo em áreas como execução penal, infância e juventude, família e processos cíveis que envolvem múltiplas partes e relações de dependência econômica ou familiar.
Do ponto de vista tecnológico, a ferramenta também revela um movimento claro: o Judiciário está consolidando uma infraestrutura de rastreadores unificados, capazes de cruzar dados por CPF, CNPJ, nome, data de nascimento, nome da mãe e outros documentos. O resultado é um retrato mais completo da pessoa, independentemente de sua posição no processo — autora, ré, testemunha, investigada ou terceiro relacionado.
Embora a ferramenta seja restrita à magistratura, seu impacto indireto alcança advogados, defensores, MP e partes. Isso porque decisões liminares, análises de risco, investigações patrimoniais e verificações de idoneidade processual passarão a ser embasadas em informações mais amplas e atualizadas. A tendência é que despachos iniciais se tornem mais precisos; que o risco de homonímias e confusões cadastrais diminua; e que processos envolvendo múltiplas relações jurídicas tenham instrução mais rápida.
Como toda inovação institucional, a Consulta Nacional de Pessoas levanta questões importantes:
Como será garantida a segurança e a rastreabilidade de acessos?
Como evitar que a amplitude dos dados gere decisões baseadas em informações irrelevantes?
Como assegurar que o uso seja sempre proporcional e estritamente vinculado à função jurisdicional?
Mas, do ponto de vista estrutural, o movimento é inequívoco: o CNJ está construindo uma Justiça mais orientada a dados, com foco em precisão e celeridade. A nova ferramenta não transforma a decisão judicial — mas transforma o caminho até ela, tornando-o mais rápido, seguro e integrado.
Apesar dos ganhos de eficiência, a amplitude informacional da ferramenta acende um alerta legítimo: até que ponto o acúmulo massivo de dados pela Justiça compromete a privacidade e expande o poder de monitoramento estatal sobre a vida civil? Centralizar dados tão sensíveis — antecedentes, vínculos familiares, endereços, relações econômicas — cria um ambiente de consulta que, embora restrito a magistrados, aumenta exponencialmente a capacidade do Estado de reconstruir a intimidade de qualquer indivíduo, muitas vezes para além do escopo estrito do caso concreto.
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