Jus Civile #68

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Institutos

Usucapião tabular

Entre as diversas modalidades de usucapião reconhecidas pelo ordenamento jurídico brasileiro, existe uma figura peculiar, nascida a partir do sistema registral e consolidada pela doutrina e jurisprudência: a usucapião tabular, também chamada de usucapião instrumental ou usucapião registral. Não se trata de modalidade autônoma prevista no Código Civil, mas de uma espécie de aquisição originária da propriedade fundada no decurso do tempo combinado com a aparência jurídica criada pelo próprio registro público.

A usucapião tabular ocorre quando alguém adquire um imóvel a partir de título registrado, mas que posteriormente se revela ineficaz, inválido ou inoperante, ainda que o adquirente tenha agido de boa-fé e passado a exercer posse contínua e incontestada. Diferentemente da usucapião ordinária (Art. 1.242 do CC), aqui a posse deriva de um registro que, embora defeituoso, confere aparência legítima de propriedade ao possuidor.

A usucapião tabular protege quem adquiriu um imóvel confiando no registro, mas cuja cadeia dominial apresenta vício que apenas o tempo é capaz de consolidar. Suas características essenciais, delineadas pela doutrina e pela jurisprudência, são:

  • Existência de título registrado em nome do possuidor, ainda que nulo ou anulável;

  • Posse mansa, pacífica e com animus domini;

  • Boa-fé do adquirente, que confia na fé pública do registro;

  • Decurso de 10 anos, aplicando-se, por analogia, a regra do Art. 1.242 do CC (usucapião ordinária), com possibilidade de redução para 5 anos nas hipóteses do parágrafo único (justo título + moradia + obra produtiva).

O ponto central da usucapião tabular é o papel do registro como fonte de confiança social. Embora o título que originou a inscrição seja inválido ou ineficaz, ele projeta uma presunção de legitimidade que o possuidor de boa-fé utiliza como fundamento para consolidar a aquisição da propriedade pelo decurso do tempo.

A jurisprudência do STJ vem reconhecendo a usucapião tabular em diversas hipóteses, especialmente quando há irregularidades na cadeia dominial — como vendas sucessivas sem formalidades, títulos nulos por defeito formal, escritura pública anulável ou mesmo registros praticados em desacordo com a origem dominial. Nesses casos, entende-se que o registro público defeituoso não pode prejudicar o terceiro de boa-fé, razão pela qual o tempo saneia o vício por meio da usucapião.

Importante destacar que a usucapião tabular pode ser buscada tanto pela via judicial quanto extrajudicial, com base na Lei de Registros Públicos. Na via administrativa, o registrador analisará:

  • A existência do registro preexistente;

  • A cadeia de posse decorrente desse título;

  • Os documentos aptos a demonstrar boa-fé e continuidade da posse.

  • Caso haja dúvida ou impugnação, o procedimento é remetido ao Judiciário.

Em síntese, a usucapião tabular evidencia a lógica moderna do Direito Registral: a propriedade não é apenas fato ou apenas registro; é confiança institucional. E quando essa confiança é depositada de boa-fé por quem adquire e exerce posse legítima, o ordenamento jurídico oferece a regularização pelo caminho do tempo — consolidando aquilo que o registro, sozinho, não conseguiu garantir.

Latim jurídico

Cum grano salis

A expressão cum grano salis significa literalmente “com um grão de sal”, mas seu sentido figurado é “com moderação” ou “com certa reserva”. No contexto jurídico, a máxima indica que determinadas afirmações, provas ou interpretações devem ser recebidas com cautela, ponderando-se as circunstâncias do caso concreto e os limites do texto normativo.

Aplicar uma regra cum grano salis é reconhecer que o Direito, embora busque a generalidade, exige temperança e prudência na interpretação. Trata-se de um lembrete de que o formalismo excessivo pode desvirtuar a justiça material, e de que o julgador deve ponderar as nuances de cada situação antes de aplicar mecanicamente a letra da lei.

📌 Exemplo prático: ao analisar um contrato de adesão com cláusulas amplas e técnicas, o juiz deve considerar cum grano salis a manifestação de vontade do consumidor, ciente de que sua liberdade contratual é relativa e frequentemente limitada pela assimetria de informação. Assim, a interpretação literal de uma cláusula pode ceder espaço à proteção da parte mais vulnerável — aplicando-se o texto com o necessário grão de sal que a equidade impõe.

Atualidades

OAB/SP: usar conversa privada de WhatsApp entre advogados em processo é infração ética

Imagem: Migalhas

A 1ª Turma de Ética Profissional do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB/SP firmou importante orientação para a advocacia: é infração ética utilizar, em peças processuais, o conteúdo de conversas privadas mantidas entre advogados via WhatsApp, quando tais mensagens se referem a tratativas negociais ou diálogo profissional reservado.

A decisão — proferida no Proc. 25.0886.2025.007105-7, em 16/10/2025 — reconhece que a comunicação direta entre advogados integra uma esfera protegida de confiança, lealdade e confraternidade, valores estruturantes da advocacia e indispensáveis ao bom funcionamento do sistema de justiça.

Ao julgar consulta formal, a Turma reforçou que conversas privadas entre advogados de polos opostos, especialmente durante a tentativa de composição, não se confundem com provas ou documentos produzidos no contexto do litígio. Ao contrário, integram uma zona ética de cooperação profissional.

Com base nisso, o Tribunal concluiu que revelar mensagens privadas sem consentimento, para obter vantagem processual, constitui violação ética grave, pois quebra a confiança necessária ao ambiente negocial, causa constrangimento ou surpresa indevida ao colega, deteriora a possibilidade de diálogo entre os advogados e desincentiva práticas consensuais, além de violar o espírito colaborativo que deve reger a profissão.

O fundamento central é que as tratativas entre advogados não pertencem ao processo, e sim ao plano ético da relação profissional. São extensões do dever de cooperação, servindo como instrumento para soluções consensuais e proteção das partes. A divulgação unilateral, fora de contexto, transforma esse espaço de confiança em arsenal probatório — distorção incompatível com o exercício ético da advocacia.

A Turma enfatizou que o advogado não pode converter conversas reservadas em elemento estratégico, sob pena de comprometer:

  • A integridade da profissão;

  • A possibilidade de acordos;

  • E o ambiente de confiança indispensável às negociações.

O precedente reforça um ponto crucial: ética profissional limita a forma como provas são obtidas e utilizadas. Ainda que, no processo civil, vigore o princípio da liberdade probatória, o advogado não está autorizado a romper o estatuto ético em nome da estratégia.

Com a decisão, fica expressamente vedado anexar prints de conversas privadas entre advogados, reproduzir mensagens de WhatsApp nas peças e instrumentalizar tratativas confidenciais para fins de argumentação ou prova.

A consequência prática é clara: a cooperação entre advogados, essencial ao funcionamento do sistema de justiça e às soluções consensuais, não pode ser sacrificada pelo contencioso. O advogado deve preservar o ambiente negocial e, caso pretenda usar qualquer informação derivada de diálogo privado, só poderá fazê-lo com autorização expressa do colega.

Radar de eventos

III Congresso Mineiro de Direito Empresarial

A OAB/MG, por meio da Comissão de Direito Empresarial, realizará nos dias 27 e 28 de novembro de 2025 o III Congresso de Direito Empresarial, consolidando Minas Gerais de volta ao centro do debate nacional em matéria societária, contratual e empresarial. O evento ocorrerá na Rua Albita, 250, Cruzeiro – Belo Horizonte/MG, reunindo pesquisadores, advogados, magistrados, professores e demais profissionais interessados no aprofundamento técnico da área.

A programação contará com painéis de alta relevância para o atual cenário jurídico-empresarial, abordando temas contemporâneos e estratégicos, conduzidos por palestrantes de notório saber, reconhecidos nacionalmente por sua atuação acadêmica e prática.

A inscrição deve ser realizada diretamente no site da OAB/MG, e o Congresso ofertará certificado de 16 horas-aula, sendo uma oportunidade relevante para atualização profissional e curricular.

InovAção

Copilot: o ecossistema de IA da Microsoft e o que ele muda (ou não) na rotina jurídica

A Microsoft consolidou o Copilot como sua plataforma oficial de inteligência artificial, integrada ao Windows, Office, Edge, Teams e Outlook. Não se trata mais de um “chatbot” paralelo, mas de um ecossistema inteiro de produtividade, capaz de atuar dentro dos programas que a advocacia já utiliza diariamente. Para profissionais do Direito — sempre divididos entre a necessidade de precisão e a pressão por eficiência — é impossível ignorar a relevância desse movimento.

Diferente de outros assistentes de IA que funcionam isoladamente, o Copilot foi concebido para operar no fluxo natural de trabalho. Seja escrevendo um e-mail, revisando um contrato, preparando uma apresentação para cliente ou participando de uma reunião virtual, há sempre uma porta de entrada para o Copilot atuar como apoio técnico.

A plataforma funciona em três níveis. O primeiro é o Copilot integrado ao Windows e ao navegador Edge: rápido, acessível e suficiente para tarefas de apoio — resumos de páginas, reescrita de trechos, organização de tópicos, explicações de conceitos e pequenas análises de documentos. O segundo é o Copilot Pro, voltado para usuários individuais: entrega acesso a modelos mais avançados, maior velocidade e melhor desempenho para textos longos, tabelas e PDFs. O terceiro, e mais robusto, é o Copilot para Microsoft 365, voltado a empresas e escritórios estruturados. Nessa versão, o Copilot atua dentro do Word, Excel, Outlook e Teams, manipulando arquivos reais, reconhecendo padrões e elaborando minutas a partir de documentos internos.

É nessa última camada que o Copilot mostra seu potencial jurídico. No Word, ele sugere cláusulas contratuais, ajusta redações, compara versões e cria minutas inteiras com base nos arquivos do próprio escritório. No Outlook, resume e organiza longas cadeias de e-mails, identificando tarefas e compromissos. No Teams, gera atas automáticas, transcreve reuniões, destaca divergências e captura pontos de decisão — um ganho importante para departamentos jurídicos e áreas de compliance. No Excel, analisa planilhas, identifica inconsistências e transforma dados em relatórios compreensíveis, úteis para cálculos de indenizações, planilhas de processos e auditorias.

O impacto na advocacia é direto: a plataforma reduz o tempo gasto em tarefas repetitivas e aumenta a capacidade analítica, especialmente quando lida com grande volume de informações. A integração profunda ao Office também facilita o uso ético da IA, pois permite que dados sensíveis sejam processados dentro do ambiente corporativo da Microsoft, com políticas de segurança definidas pelo próprio escritório — algo que não se obtém com ferramentas externas ou gratuitas.

Mas há limites. O Copilot, mesmo em sua versão mais avançada, não “entende” Direito no sentido técnico: ele reconhece padrões, mas não interpreta normas nem substitui o raciocínio jurídico. Além disso, sua eficácia depende fortemente da qualidade dos documentos internos do usuário. Escritórios com bases desorganizadas ou com versões conflitantes de minutas tendem a receber sugestões inconsistentes.

No conjunto, o Copilot se destaca não por ser mais “criativo” que outras IAs, mas por estar onde o trabalho acontece. Sua força está na integração: enquanto outras ferramentas atuam “ao lado” do advogado, o Copilot atua dentro dos aplicativos que ele já usa. É essa proximidade funcional que está redefinindo a forma como advogados escrevem, revisam, organizam e tomam decisões.

No fim, o Copilot não transforma a advocacia em um processo automatizado — mas transforma a produtividade em uma vantagem estratégica. Ele reduz o peso das tarefas secundárias para que o advogado possa se dedicar àquilo que nenhuma IA entrega: estratégia, julgamento e confiança.

Se este conteúdo te fez pensar, questionar ou até sorrir de leve, compartilhe a Jus Civile com alguém que também possa se interessar. Esse é o sinal mais claro de que estamos no caminho certo. 🦉📚

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