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Jus Civile #67

85% das coisas que te tiram o sono nunca vão acontecer. O futuro se resolve melhor quando você cuida bem do presente. Dito isso, pegue seu café e tenha uma boa leitura! 🦉☕
Institutos
Culpa concorrente
Nem sempre o dano resulta da conduta exclusiva de uma das partes. Há situações em que tanto o autor quanto a vítima contribuem para o evento lesivo, de forma simultânea ou complementar. Nessas hipóteses, o ordenamento jurídico reconhece a culpa concorrente, instituto que impõe a repartição proporcional da responsabilidade entre os envolvidos, conforme o grau de participação de cada um no resultado danoso.
A base normativa da culpa concorrente está no Art. 945 do Código Civil, que dispõe que se a vítima tiver concorrido culposamente para o evento danoso, a sua indenização será fixada tendo-se em conta a gravidade de sua culpa em confronto com a do autor do dano.
A regra consagra o princípio da equidade na reparação civil, permitindo que o juiz reduza o valor da indenização quando comprovada a contribuição culposa da própria vítima para o resultado. Não se trata de eximir o ofensor de responsabilidade, mas de reconhecer que a conduta da vítima também integra a cadeia causal do dano, devendo, por isso, ser levada em consideração na fixação da reparação.
A aplicação do Art. 945 exige a presença de três elementos:
Ato culposo do agente (negligência, imprudência ou imperícia);
Contribuição culposa da vítima para o evento lesivo;
Nexo causal compartilhado, em que ambas as condutas concorrem para o mesmo resultado.
O instituto tem relevância prática em casos de acidentes de trânsito, relações de consumo, responsabilidade médica, danos ambientais e acidentes do trabalho. Por exemplo, quando um pedestre atravessa fora da faixa e é atropelado por motorista em excesso de velocidade, ambos concorrem para o evento danoso — cabendo ao juiz ponderar a gravidade de cada conduta para fixar o valor da indenização.
O STJ, em decisões recentes, tem reiteradamente reconhecido que a culpa concorrente não exclui a responsabilidade, mas apenas mitiga os efeitos patrimoniais da indenização. A jurisprudência destaca que a análise deve ser casuística, considerando as circunstâncias concretas e o equilíbrio entre o dever de cuidado das partes.
Doutrinariamente, a culpa concorrente é vista como expressão da função distributiva da responsabilidade civil, afastando soluções extremas e permitindo que a reparação reflita, com maior fidelidade, o comportamento real das partes. Essa orientação está em harmonia com os princípios da boa-fé objetiva e da função social da responsabilidade, que rejeitam a ideia de indenizações integrais quando há contribuição significativa da vítima para o dano.
Em tempos de crescente judicialização e sensibilidade social quanto ao dever de indenizar, a culpa concorrente cumpre papel civilizatório: lembra que o direito não protege a vítima de si mesma, nem pune o ofensor além da medida de sua culpa.
Assim, compreender o instituto é compreender o equilíbrio essencial da responsabilidade civil: entre quem causa e quem sofre o dano, o juiz deve medir, com justiça e prudência, a fração de culpa que a cada um pertence — e transformar a indenização não em castigo, mas em correção justa de desequilíbrios.
Latim jurídico
Ipso facto
A locução ipso facto significa “pelo próprio fato” ou “em virtude do próprio acontecimento”, sendo usada para indicar que determinadas consequências jurídicas decorrem automaticamente de um evento, sem necessidade de declaração judicial ou de ato adicional das partes.
Trata-se de expressão recorrente em normas que atribuem efeitos imediatos a certos fatos jurídicos, dispensando qualquer manifestação de vontade posterior. Assim, o ipso facto marca situações em que o efeito nasce no instante em que o fato ocorre, independentemente de intervenção humana.
📌 Exemplo prático: quando o devedor é declarado em falência, todos os seus contratos bilaterais não cumpridos tornam-se vencidos ipso facto (por força da própria sentença), sem necessidade de nova notificação. Da mesma forma, em contratos de locação com cláusula resolutiva expressa, o inadimplemento pode gerar a resolução ipso facto do contrato — o efeito jurídico nasce com o simples descumprimento, e não com a posterior declaração judicial.
Atualidades
STJ estende o direito real de habitação a herdeiro curatelado em situação de vulnerabilidade
A Terceira Turma do STJ reconheceu, pela primeira vez, a possibilidade de aplicação extensiva do direito real de habitação a herdeiro vulnerável, ainda que não exista cônjuge ou companheiro sobrevivente. O entendimento, firmado no REsp 2.212.991/AL, de relatoria da Ministra Nancy Andrighi, representa relevante alteração na interpretação do Art. 1.831 do Código Civil, ampliando o alcance do direito à moradia no contexto sucessório.
O caso envolveu um inventário no qual os pais falecidos deixaram apenas um imóvel residencial, avaliado em cerca de R$ 250 mil, que servia de moradia ao filho curatelado — diagnosticado com esquizofrenia paranoide — e a seu irmão, também inventariante da herança. Após o indeferimento do pedido em primeira e segunda instâncias, o STJ reformou o acórdão do TJ/AL e concedeu o direito real de habitação ao herdeiro curatelado, garantindo-lhe o uso vitalício do imóvel familiar.
A relatora destacou que o direito real de habitação tem função protetiva, fundada na dignidade da pessoa humana e no direito constitucional à moradia (Art. 6º da CF). Embora a lei restrinja o benefício ao cônjuge ou companheiro supérstite, a ministra observou que o fundamento do instituto é justamente impedir o desamparo habitacional de quem dependia economicamente do falecido — razão pela qual sua extensão, em hipóteses excepcionais, é compatível com a finalidade social da norma.
Segundo o voto, “quando o falecido deixa herdeiros em condição de vulnerabilidade, especialmente pessoas com deficiência ou incapacidade que dependiam economicamente dele, a função social do direito real de habitação deve prevalecer sobre o direito de propriedade dos demais herdeiros”.
O Tribunal ponderou que, nesse caso, todos os herdeiros continuam titulares da propriedade, já que o direito real de habitação não transfere domínio, mas apenas uso exclusivo para moradia. Assim, o reconhecimento do benefício não viola a isonomia sucessória, mas concretiza o princípio da solidariedade familiar.
O voto-vista do Ministro Moura Ribeiro acompanhou integralmente a relatora, ressaltando que o Projeto de Reforma do Código Civil (PL 4/2025) já propõe expressamente a extensão do direito de habitação a descendentes incapazes ou com deficiência, sinalizando uma convergência entre a evolução legislativa e o entendimento jurisprudencial do STJ.
O acórdão inaugura uma nova perspectiva no Direito das Sucessões, ao reconhecer que a proteção sucessória não se limita a vínculos conjugais, mas também pode se estender a relações familiares marcadas pela dependência e vulnerabilidade.
Embora a decisão da Terceira Turma revele sensibilidade social e compatibilidade com os valores constitucionais da dignidade e da solidariedade familiar, ela também tensiona a segurança jurídica e a previsibilidade sucessória. Ao estender o direito real de habitação a herdeiros vulneráveis sem amparo legal expresso, o STJ assume papel quase legislativo, criando exceção que não encontra previsão no texto do Art. 1.831 do Código Civil.
Essa ampliação hermenêutica, ainda que justa no caso concreto, pode gerar insegurança entre os herdeiros e compradores de bens de espólio, sobretudo diante da ausência de critérios objetivos para definir o que se entende por “vulnerabilidade” ou “dependência econômica”.
A decisão sinaliza um avanço humanitário, mas também revela a necessidade de se delimitar de forma precisa as hipóteses de extensão do direito real de habitação, sob pena de comprometer a estabilidade das relações patrimoniais e o equilíbrio entre proteção social e livre disposição dos bens.
InovAção
Segurança e sigilo na advocacia digital: o que a IA pode — e não pode — armazenar

Imagem: criação Jus Civile
O uso de inteligência artificial em escritórios de advocacia deixou de ser tendência para se tornar rotina. Petições, contratos, pareceres e comunicações internas já passam, em maior ou menor grau, por algum tipo de automação. No entanto, a adoção dessas ferramentas traz um tema que ainda carece de maturidade no meio jurídico: a segurança da informação e o sigilo profissional diante da IA.
Ferramentas generativas como o ChatGPT, Claude, Gemini e Copilot trabalham a partir de modelos hospedados em nuvem, processando dados remotamente e armazenando temporariamente informações inseridas pelos usuários. Esse modelo de funcionamento, ainda que eficiente, abre brechas relevantes de confidencialidade. Quando um advogado insere o nome de um cliente, o número de um processo ou o conteúdo de uma negociação privada, esses dados — ainda que anonimizados — podem permanecer nos logs do sistema e ser utilizados, de forma agregada, para aprimorar o modelo.
A própria OpenAI reconhece essa dinâmica. Em seus planos gratuitos e Plus, as interações podem ser usadas para o aprimoramento da IA, enquanto apenas os planos Team e Enterprise garantem processamento isolado, sem retenção de dados para treinamento. É um ponto que passa despercebido, mas que muda completamente o patamar de segurança: não é o mesmo ChatGPT para todos. Escritórios e departamentos jurídicos que pretendem usar IA de forma institucional precisam compreender essa diferença antes de delegar à máquina qualquer informação estratégica.
Do ponto de vista jurídico, o desafio é conciliar a eficiência da IA com o dever ético de sigilo. O art. 26 do Código de Ética e Disciplina da OAB impõe ao advogado o dever de guardar confidencialidade sobre fatos de que tenha conhecimento no exercício profissional. Esse dever se estende a todos os meios tecnológicos utilizados, inclusive sistemas de IA. Assim, inserir dados sensíveis em plataformas sem garantias contratuais de proteção pode configurar violação indireta de sigilo profissional.
A solução passa por governança digital e conscientização técnica. Cada escritório deve definir políticas internas claras sobre o uso de IA — o que pode ser inserido, o que deve permanecer offline e quais ferramentas são consideradas seguras. Nos casos de uso corporativo, recomenda-se optar por soluções com processamento local ou hospedagem em nuvem privada, em que o controle dos dados permanece sob domínio do escritório. Ferramentas open source, como o Whisper (para transcrição) ou o PrivateGPT (para análise documental local), também despontam como alternativas mais seguras para operações sensíveis.
Além disso, o advogado deve adotar boas práticas básicas:
Evitar inserir dados identificáveis (nomes de partes, números de processo, valores, documentos sigilosos) em ferramentas de uso aberto.
Utilizar versões empresariais ou locais sempre que o conteúdo envolver clientes ou estratégias jurídicas.
Implementar revisões humanas em todo conteúdo gerado por IA antes do envio ou protocolo.
No fim, a discussão sobre IA e sigilo não é apenas técnica — é cultural. A advocacia, que há séculos se ancora na confiança, precisa compreender que privacidade digital é a nova forma de lealdade profissional. Não basta dominar a ferramenta; é preciso conhecer seus limites e garantir que a inovação não fragilize o vínculo mais essencial entre advogado e cliente: o da confidencialidade.
Mais uma edição chega ao fim — e você, mais uma vez, esteve com a gente. Se gostou do conteúdo, compartilhe a Jus Civile com um colega. É assim que o projeto se mantém vivo: de leitor para leitor. 🦉📚
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