Jus Civile #66

A rotina jurídica é feita de prazos, mas o raciocínio exige tempo. A Jus Civile chega como pausa necessária entre o trabalho e o pensamento. Boa leitura! 🦉

Institutos

Contradita

A prova testemunhal ocupa lugar central no processo civil, especialmente quando os fatos controvertidos dependem da percepção humana. Contudo, o depoimento só é válido se prestado por pessoa idônea, imparcial e não impedida por lei. É justamente para garantir essa confiabilidade que o ordenamento jurídico prevê a contradita, instituto que permite às partes impugnar a testemunha antes de seu depoimento, com base em motivos legais ou morais que afetem sua credibilidade.

A contradita está disciplinada nos Arts. 457 e 458 do CPC, que tratam da oitiva das testemunhas; determina o código que, antes de depor, a testemunha será qualificada e as partes poderão contraditá-la, arguindo-lhe a incapacidade, o impedimento ou a suspeição. Reconhecida a procedência da contradita, a testemunha não prestará compromisso, sendo ouvida apenas como informante, se o juiz assim entender.

Os fundamentos da contradita estão nos Arts. 447 e 448 do CPC, que elencam as hipóteses de impedimento e suspeição. São impedidas, por exemplo, as pessoas incapazes, as que intervêm como representantes da parte, e as que tenham interesse direto no litígio. Já são suspeitas as testemunhas amigas íntimas, inimigas declaradas ou que tenham relação de parentesco próximo com as partes.

O momento adequado para a contradita é logo após a qualificação da testemunha, antes de seu compromisso legal. O juiz deve permitir que a parte apresente as razões e, se necessário, provar a alegação, o que pode envolver documentos, perguntas ou até mesmo a oitiva de outra testemunha. Se acolhida a contradita, o depoimento não será colhido como prova testemunhal, mas poderá ser admitido como mera informação, sem o mesmo peso probatório.

Do ponto de vista prático, a contradita é um importante instrumento de controle da prova, frequentemente utilizado em ações de família, possessórias, trabalhistas e consumeristas, em que o vínculo pessoal entre as partes e as testemunhas pode comprometer a isenção do depoimento. O advogado deve exercer esse direito de forma técnica e respeitosa, evitando transformar a contradita em um confronto pessoal, mas utilizando-a como meio legítimo de preservar o equilíbrio processual.

A jurisprudência reconhece que o indeferimento indevido da contradita pode configurar cerceamento de defesa, ensejando nulidade processual, desde que demonstrado o prejuízo. Por outro lado, o uso abusivo da contradita — com o intuito de intimidar testemunhas ou atrasar o andamento do processo — pode caracterizar litigância de má-fé.

Mais do que um formalismo, a contradita é uma manifestação do princípio da lealdade processual e do contraditório substancial. Em um sistema que busca a verdade possível, o testemunho precisa ser mais que uma voz: precisa ser confiável.

Latim jurídico

Causa excipiendi

A expressão causa excipiendi significa “motivo de defesa” ou “razão para excepcionar”, e refere-se ao fundamento que justifica a oposição de uma exceção ou defesa pelo réu no processo. Em outras palavras, indica a causa jurídica que legitima o exercício do direito de se defender diante de uma pretensão deduzida em juízo.

No sistema romano, as exceptiones eram meios processuais que o demandado utilizava para afastar ou restringir o pedido do autor, mesmo reconhecendo, em parte, os fatos alegados. A causa excipiendi, portanto, correspondia ao motivo legítimo dessa oposição — como a prescrição, o pagamento, a compensação ou a ausência de interesse processual. Essa lógica permanece viva no processo civil contemporâneo, em que o réu pode alegar matérias de defesa que impeçam, extingam ou modifiquem o direito do autor.

📌 Exemplo prático: um locador ajuíza ação de cobrança de aluguéis. O réu, locatário, reconhece o contrato, mas apresenta comprovantes de pagamento de todos os valores. A causa excipiendi, nesse caso, é o adimplemento da obrigação — fundamento de defesa que extingue o direito do autor e conduz à improcedência do pedido. Ainda que o fato gerador tenha ocorrido, a exceção legítima impede a condenação.

Atualidades

STJ: cláusula de não concorrência sem limite temporal é anulável

Imagem: criação Jus Civile

A Terceira Turma do STJ consolidou novo marco interpretativo sobre a validade das cláusulas de não concorrência, ao decidir que a ausência de limitação temporal não torna a cláusula nula, mas apenas anulável, o que impede sua declaração de ofício pelo Judiciário. O entendimento foi firmado no REsp 2.185.015/SC, relatado pela Ministra Nancy Andrighi, em julgamento unânime.

O caso envolveu ex-sócias de duas lojas de roupas infantis — “Beabá Baby” e “Beabá Moda Infantil” — que, ao dissolverem a sociedade, firmaram cláusula de não concorrência para impedir a comercialização de produtos nas faixas de tamanhos reservadas à outra. O contrato, entretanto, não previa limite temporal para essa restrição.

O Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC) havia declarado a cláusula nula de ofício, entendendo que a ausência de prazo violaria os princípios constitucionais da livre iniciativa e da livre concorrência (Art. 170, IV, da CF).

O STJ reformou a decisão, reconhecendo que a cláusula de não concorrência sem limitação temporal não é nula, mas anulável, por representar violação a interesse privado, e não público. Por essa razão, o vício não pode ser reconhecido de ofício pelo juiz — deve ser arguido pela parte interessada dentro do prazo decadencial previsto nos Arts. 178 e 179 do Código Civil.

Segundo a relatora, “As cláusulas de não concorrência, por restringirem a liberdade de empreender, só são válidas quando limitadas no tempo e no espaço. Contudo, a ausência desses limites gera anulabilidade, e não nulidade — o que impede o reconhecimento de ofício pelo magistrado.”

A ministra também reforçou que o instituto da anulabilidade é sanável, podendo o vício ser confirmado pelas partes, salvo direito de terceiros (Art. 172 do CC).

Além disso, o colegiado reconheceu a incidência da exceção do contrato não cumprido (Art. 476 do CC), uma vez que ambas as ex-sócias descumpriram a cláusula de não concorrência — uma vendendo tamanhos acima do permitido, e a outra, abaixo. Assim, o STJ assentou que nenhuma das partes pode exigir o cumprimento da obrigação enquanto também estiver inadimplente.

O acórdão marca importante evolução na aplicação das cláusulas de não concorrência no Direito Contratual e Empresarial brasileiro. O STJ:

  • Distingue nulidade e anulabilidade de forma precisa, reforçando a necessidade de contraditório e iniciativa da parte interessada;

  • Valoriza a autonomia privada e a liberdade contratual, permitindo a adequação posterior de cláusulas imperfeitas, em vez de sua anulação automática;

  • E reafirma a força vinculante da boa-fé objetiva e da reciprocidade contratual, pela correta aplicação da exceção do contrato não cumprido.

O precedente equilibra segurança jurídica e liberdade econômica, evitando que cláusulas contratuais legítimas sejam invalidadas sem provocação das partes, e delimita com clareza o papel do Judiciário na tutela da livre concorrência e da iniciativa privada.

InovAção

Whisper: aplicação Open Source para transcrição de voz para texto

Grande parte do trabalho jurídico nasce da palavra falada — audiências, reuniões, sustentações orais, entrevistas e diligências. Até pouco tempo, transformar esse conteúdo em texto exigia horas de digitação ou serviços de transcrição caros e imprecisos. Foi para resolver esse gargalo que a OpenAI lançou o Whisper, um sistema de reconhecimento automático de voz (ASR) que converte fala em texto com notável precisão, inclusive em português.

O Whisper é treinado com centenas de milhares de horas de áudio multilíngue e reconhece diferentes sotaques, ruídos e velocidades de fala. Ele já está integrado ao ChatGPT, nas versões Plus, Team e Enterprise, permitindo que o usuário dite mensagens, petições ou resumos diretamente pelo microfone do aplicativo móvel. Basta falar — e a IA transcreve com fluidez, pontuação e fidelidade surpreendentes.

Mas o maior diferencial está na versão open source, disponível gratuitamente no GitHub da OpenAI. Essa modalidade pode ser instalada localmente, em computadores ou servidores próprios, possibilitando o processamento offline de arquivos de áudio (como gravações de audiências, reuniões e diligências). É uma alternativa estratégica para escritórios e departamentos jurídicos que lidam com informações sigilosas e não desejam enviá-las para servidores externos.

Na prática, o advogado pode usar o Whisper para transcrever audiências remotas, gerar atas automáticas, registrar reuniões com clientes ou ditar rascunhos de peças durante deslocamentos. Em departamentos jurídicos, pode ser integrado a sistemas internos para criar registros de compliance, atas de comitês e relatórios executivos baseados em conversas. Além disso, seu caráter aberto e flexível favorece a integração com outras ferramentas — de softwares de gestão de escritório a editores de vídeo e plataformas de produtividade.

O recurso também amplia a acessibilidade. Profissionais com deficiência auditiva podem utilizá-lo para gerar legendas automáticas de vídeos ou audiências; já escritórios que promovem eventos e cursos jurídicos podem criar versões transcritas de palestras e webinários em minutos.

Ainda assim, o uso da ferramenta requer cautela. A gravação de conversas e audiências depende de consentimento expresso das partes, e a revisão humana das transcrições continua indispensável para assegurar a fidelidade jurídica do conteúdo. No caso da versão integrada ao ChatGPT, recomenda-se evitar o envio de dados sensíveis, já que o processamento é feito nos servidores da OpenAI. A versão local, por outro lado, oferece controle total de privacidade, ideal para ambientes que exigem sigilo profissional.

Em síntese, o Whisper é mais do que uma ferramenta de transcrição: é um passo em direção à automação auditiva do Direito. Ele transforma o que é dito em informação útil, rastreável e pronta para ser analisada. Em um mundo onde tempo e clareza são bens escassos, fazer a voz se converter em texto de forma segura e instantânea é mais do que conveniência — é eficiência jurídica em sua forma mais pura.

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