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Jus Civile #64

Não existe virtude mais rara — e valiosa — do que a fidelidade. Ser leal não é sobre o outro, é sobre quem você escolhe ser quando ninguém está olhando. Boa leitura! 🦉☕
Institutos
Coligação contratual
Na prática contratual contemporânea, é cada vez mais comum que um mesmo negócio envolva múltiplos instrumentos jurídicos interligados, cada um com função própria, mas voltados à realização de um fim econômico único. É o que se denomina coligação contratual — fenômeno em que dois ou mais contratos, embora distintos em forma e conteúdo, mantêm entre si uma relação de dependência ou complementaridade, de modo que a sorte de um repercute sobre os demais.
A coligação contratual não está expressamente prevista no Código Civil, mas decorre da aplicação dos princípios da boa-fé objetiva e da autonomia privada. Sua essência é a coordenação negocial: contratos formalmente independentes passam a ser funcionalmente interdependentes, compondo uma unidade econômica e jurídica.
Há várias formas de coligação, mas as principais são:
Coligação por dependência, quando a validade ou eficácia de um contrato pressupõe outro (ex.: contrato de compra e venda e contrato de financiamento bancário);
Coligação por coordenação, quando contratos autônomos são celebrados para um fim comum, sem subordinação entre eles (ex.: empreitada e contrato de fornecimento de materiais para uma mesma obra);
Coligação por instrumentalidade, quando um contrato serve de instrumento para viabilizar outro (ex.: contrato de abertura de crédito que sustenta uma operação de leasing).
A importância prática da coligação está nas consequências jurídicas de sua unidade funcional. Em muitos casos, a nulidade, rescisão ou inadimplemento de um contrato pode contaminar os demais, sobretudo quando há dependência direta entre as prestações. O STJ já reconheceu, por exemplo, a interdependência entre contratos de compra e venda e financiamento de veículo: a resolução do contrato principal implica a extinção do contrato acessório de crédito, evitando o enriquecimento indevido de uma das partes.
🔹 Nos contratos coligados, o inadimplemento de um pode repercutir sobre os demais, pela lógica da função econômica unitária.
A coligação também é relevante em setores como franquia, incorporação imobiliária, consumo e operações empresariais complexas, em que a autonomia formal dos contratos não afasta a interdependência substancial das obrigações. O reconhecimento da coligação, nesses casos, permite ao juiz interpretar e aplicar os contratos de forma conjunta, preservando o equilíbrio econômico do negócio e coibindo abusos decorrentes de separações artificiais.
Do ponto de vista doutrinário, prevalece o entendimento de que a coligação não cria um “novo contrato”, mas um conjunto contratual funcionalmente integrado, em que cada instrumento mantém sua individualidade formal, mas compartilha um mesmo destino econômico e jurídico.
Ao advogado, cabe identificar a existência (ou não) de coligação, tanto para proteger os efeitos de um contrato em caso de ruptura de outro, quanto para pleitear a extensão das consequências jurídicas (como a rescisão ou indenização) a todo o complexo contratual. Ignorar essa interdependência pode significar perder de vista a verdadeira estrutura do negócio.
Latim jurídico
Culpa in contrahendo
A expressão culpa in contrahendo designa a responsabilidade decorrente de comportamentos culposos praticados durante as negociações preliminares, antes da celebração efetiva do contrato. Ainda que o vínculo não se concretize, as partes têm o dever de agir com boa-fé, lealdade e transparência, sob pena de responder pelos prejuízos causados à contraparte.
O instituto, desenvolvido por Rudolf von Jhering no século XIX, reflete a ideia de que a boa-fé não surge apenas com o contrato assinado, mas já vincula as partes desde o início das tratativas. Assim, quem rompe as negociações de forma arbitrária, omite informações relevantes ou cria expectativa legítima de contratação pode ser civilmente responsabilizado, mesmo que o contrato não tenha se formado.
📌 Exemplo prático: uma construtora inicia negociações avançadas para vender um terreno a uma incorporadora, autoriza vistoria técnica e fornece documentos para registro. Após semanas de tratativas e gastos pela compradora, a construtora rompe abruptamente as negociações e vende o imóvel a terceiro, por preço ligeiramente superior. Nesse caso, o comportamento viola o dever de lealdade e configura culpa in contrahendo, ensejando indenização pelos prejuízos suportados com base na responsabilidade pré-contratual.
Atualidades
STJ determina a criação de incidente processual para identificação de bens digitais em ação de inventário

Imagem: Freepik
A Terceira Turma do STJ, em julgamento histórico, reconheceu que os bens digitais integram o acervo sucessório e determinou que o acesso dos herdeiros a esses ativos deve ocorrer mediante incidente processual específico de identificação, classificação e avaliação dos bens digitais. O entendimento foi firmado no REsp 2.124.424/SP, relatado pela Ministra Nancy Andrighi.
O caso teve origem em inventário decorrente de acidente aéreo em que faleceu uma família inteira. Uma das herdeiras solicitou ao juízo que oficiasse a empresa Apple, buscando informações sobre o conteúdo dos iPads utilizados pelos falecidos, suspeitando que os dispositivos continham dados patrimoniais relevantes. Após resposta técnica e incompreensível da empresa, foi pedido novo ofício, o que foi negado sob o fundamento de que a questão configuraria “alta indagação”, devendo ser discutida em ação autônoma.
O STJ reformou o acórdão do Tribunal de origem, reconhecendo que a identificação e o acesso aos bens digitais são atos integrativos do inventário, e não matéria de alta indagação. Para a relatora, o avanço tecnológico impõe a adaptação dos institutos clássicos do Direito das Sucessões, garantindo que a herança digital — composta por bens, contas, dados e ativos armazenados em meios eletrônicos — seja tratada com a mesma relevância dos bens materiais.
Segundo a ministra, diante da ausência de previsão legal sobre o procedimento de acesso a bens digitais de pessoas falecidas, o juiz deve instaurar incidente processual próprio, conduzido sob sigilo e com a assistência de profissional especializado, denominado inventariante digital, responsável por identificar e classificar o conteúdo encontrado nos dispositivos eletrônicos.
O STJ destacou que, ao mesmo tempo em que deve ser assegurado aos herdeiros o direito à totalidade do patrimônio do falecido — bens analógicos e digitais (Art. 5º, XXX, da CF) —, é necessário preservar os direitos da personalidade, especialmente a intimidade e a privacidade do falecido e de terceiros.
A decisão, portanto, equilibra dois valores fundamentais: a transmissibilidade patrimonial e a proteção da intimidade post mortem.
O Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva apresentou voto divergente, reconhecendo o direito de acesso dos herdeiros aos bens digitais, mas sem a necessidade de criação obrigatória do incidente processual e da figura do inventariante digital. Para ele, deveria prevalecer o princípio da sucessão universal (Art. 1.784 do CC), permitindo que os herdeiros acessem diretamente os dados e ativos digitais, observando o sigilo judicial e os direitos da personalidade.
O precedente inaugura, na prática, a regulamentação judicial da herança digital no Brasil, estabelecendo diretrizes para o tratamento de bens e dados armazenados em dispositivos eletrônicos e plataformas online.
A decisão:
Reconhece juridicamente os bens digitais como parte do acervo hereditário;
Determina que o acesso ocorra sob controle judicial e técnico especializado;
Reforça a necessidade de compatibilizar direitos sucessórios e direitos de personalidade;
E antecipa, na jurisprudência, um tema ainda carente de regulamentação legislativa.
Mais que uma decisão técnica, o julgamento marca a transição do Direito das Sucessões para a era digital, impondo a reflexão sobre o destino jurídico de dados, contas e memórias armazenadas no ambiente virtual.
InovAção
Ideogram: inteligência artificial com uso potencial para visual law
A comunicação jurídica vive um momento de transição. A linguagem exclusivamente textual, por décadas dominante nas petições e pareceres, começa a dividir espaço com recursos visuais que ajudam a tornar o Direito mais compreensível, didático e acessível. Nesse cenário, ferramentas de inteligência artificial como a Ideogram surgem como aliadas valiosas para quem deseja incorporar o visual law de forma prática e tecnicamente consistente.
O Ideogram é uma plataforma de geração de imagens que se diferencia por algo que parece simples, mas que faz enorme diferença: a capacidade de produzir textos legíveis dentro das imagens. Enquanto outros geradores de imagem com IA costumam distorcer palavras, a Ideogram é capaz de integrar texto e design com precisão, o que a torna ideal para advogados, escritórios e departamentos jurídicos que desejam criar infográficos, fluxogramas, painéis explicativos e materiais visuais institucionais sem depender de designers ou ferramentas complexas.
Na prática, a Ideogram pode ser usada para ilustrar linhas do tempo processuais, etapas de execução, esquemas de responsabilidade contratual, organogramas societários ou resumos de decisões complexas. Isso favorece tanto a clareza das peças processuais quanto a comunicação com clientes e equipes, especialmente em casos que envolvem conceitos técnicos ou múltiplas fases procedimentais. É também uma ferramenta útil para o marketing jurídico.
Entre as vantagens mais notáveis estão a facilidade de uso e a qualidade visual dos resultados. O sistema permite que o advogado descreva, em linguagem natural, o tipo de imagem que deseja — por exemplo, “fluxograma explicando as etapas da execução fiscal, com tipografia legível em português e cores sóbrias” — e, em segundos, gera um material profissional, ajustável em cores e estilos. O resultado pode ser exportado em alta resolução e usado em petições, apresentações, relatórios ou publicações digitais.
Ainda assim, é importante reconhecer algumas limitações. A IA do Ideogram não compreende o Direito em si; ela interpreta descrições textuais. Isso significa que o resultado dependerá fortemente da qualidade do prompt — ou seja, da clareza e precisão das instruções dadas. Além disso, a ferramenta, apesar de permitir uso em português, ainda oferece melhor desempenho quando as instruções são formuladas em inglês, especialmente no que diz respeito a nuances gráficas e contextuais. Outro ponto de atenção é a verificação do conteúdo: o visual não substitui a fundamentação jurídica, e cabe sempre ao profissional conferir se o material gerado representa corretamente o conceito ou procedimento retratado.
Para explorar o melhor da ferramenta, vale seguir duas recomendações práticas simples:
Estruture o prompt de forma lógica e objetiva, indicando o tipo de visual desejado, o conteúdo textual que deve aparecer e o estilo (institucional, acadêmico, infográfico, etc.).
Revise o material final com o mesmo rigor com que revisaria uma petição — garantindo que a estética não sobreponha o conteúdo.
O Ideogram é, em essência, uma ponte entre o Direito e o design. Ele não substitui o raciocínio jurídico, mas o potencializa visualmente. Em um mundo em que a atenção é um bem escasso e a clareza se tornou um ativo estratégico, comunicar-se com elegância visual pode ser tão importante quanto argumentar com precisão técnica. E ferramentas como a Ideogram tornam essa transição não apenas possível, mas acessível a qualquer profissional do Direito que queira se destacar pela forma e pelo conteúdo.
Obrigado por nos acompanhar até o fim desta edição. Se algo aqui foi útil a você, compartilhe a newsletter com quem também gosta de analisar o Direito com profundidade. A Jus Civile cresce com a sua indicação. 🦉📚
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