Jus Civile #63

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Institutos

Alimentos avoengos

Imagem: criação Jus Civile

O dever de prestar alimentos tem como fundamento a solidariedade familiar e decorre do parentesco em linha reta, abrangendo pais, filhos e ascendentes de forma sucessiva. Essa regra está expressamente prevista no Art. 1.696 do Código Civil, segundo o qual “o direito à prestação de alimentos é recíproco entre pais e filhos, e extensivo a todos os ascendentes, recaindo a obrigação nos mais próximos em grau, uns em falta de outros”.

É justamente desse dispositivo que nasce a figura dos alimentos avoengos — ou seja, os alimentos devidos pelos avós aos netos, quando os pais não têm condições de cumprir integralmente a obrigação alimentar. Trata-se de obrigação subsidiária e complementar, jamais originária. Os avós só são chamados a contribuir na falta ou insuficiência dos pais, conforme interpretação consolidada pela doutrina e pela jurisprudência.

🔹 A obrigação avoenga é sucessiva, subsidiária e excepcional — não substitui o dever primário dos pais.

De acordo com o Código Civil, se o parente, que deve alimentos em primeiro lugar, não estiver em condições de suportar totalmente o encargo, serão chamados a concorrer os de grau imediato; sendo várias as pessoas obrigadas, todas devem concorrer na proporção dos respectivos recursos. Assim, a obrigação dos avós não é automática: depende da demonstração, no processo, de que os genitores são total ou parcialmente incapazes de prover os alimentos necessários à subsistência do alimentando.

O STJ fixou tem entendimento fixado que os alimentos avoengos não decorrem automaticamente do vínculo de parentesco, exigindo prova da impossibilidade dos pais. Portanto, o dever dos avós surge apenas em caráter subsidiário e complementar, nunca solidário com os genitores.

Além disso, a obrigação avoenga deve observar o binômio necessidade-possibilidade, aplicável a toda relação alimentar. Ou seja, cabe verificar tanto a necessidade concreta do neto quanto a real capacidade econômica dos avós, para que o encargo não represente violação à proporcionalidade nem comprometa a própria subsistência dos ascendentes.

A execução dos alimentos avoengos segue o mesmo rito das demais prestações alimentares, podendo, em casos extremos, admitir a prisão civil. Todavia, o STJ tem sido restritivo quanto a essa possibilidade, ponderando que, por se tratar de obrigação derivada e excepcional, a prisão dos avós deve ser medida de última ratio, aplicável apenas diante de descumprimento injustificado de decisão judicial definitiva.

O tema também suscita implicações morais e sociais relevantes. A obrigação avoenga representa, em essência, a expressão jurídica da solidariedade entre gerações, impondo aos ascendentes o dever de amparar seus descendentes quando os responsáveis diretos falham. Contudo, não se trata de transferir aos idosos o encargo financeiro de seus netos, mas de garantir a subsistência digna da criança ou adolescente em situações de vulnerabilidade familiar comprovada.

Latim jurídico

Ratio essendi

A expressão ratio essendi significa “razão de ser” ou “fundamento de existência”. No campo jurídico, é usada para designar a causa ou o motivo essencial que justifica a criação ou a função de um instituto, norma ou decisão judicial. Enquanto a ratio decidendi explica o fundamento lógico de uma decisão específica, a ratio essendi revela o porquê da própria existência do instituto jurídico, ou seja, sua essência teleológica.

Compreender a ratio essendi é ir além da letra da lei: é identificar a finalidade que o ordenamento buscou atingir. Por isso, esse conceito é valioso em interpretações sistemáticas e principiológicas, permitindo distinguir o sentido formal de um dispositivo de sua razão substancial.

📌 Exemplo prático: A impenhorabilidade do bem de família, prevista na Lei 8.009/90, não se justifica apenas como uma proteção patrimonial. Sua ratio essendi está na tutela da dignidade da pessoa humana e da moradia familiar, valores constitucionais que fundamentam a norma. Assim, qualquer interpretação que desvirtue essa finalidade — como permitir a penhora em situações que comprometam a habitação — violaria a própria razão de ser do instituto.

Atualidades

Valores resgatados de seguro de vida podem ser penhorados, decide STJ

A Terceira Turma do STJ fixou importante precedente sobre o alcance da impenhorabilidade dos seguros de vida. No julgamento do REsp 2.176.434/DF, o Tribunal decidiu que os valores provenientes de seguro de vida resgatável perdem a proteção legal após o resgate feito pelo próprio segurado, podendo, portanto, ser penhorados para satisfação de dívida.

O caso teve origem em execução movida por credores contra empresário que possuía um seguro de vida com cláusula de resgate. O executado havia utilizado parte do valor para quitar salários atrasados de funcionários e mantinha o restante em conta bancária, o que levou o juízo a ordenar a penhora desses recursos. O Tribunal de Justiça do Distrito Federal, entretanto, considerou a quantia impenhorável, aplicando o Art. 833, VI, do CPC, que protege seguros de vida e indenizações securitárias.

O relator, Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, reformou o acórdão, esclarecendo que a proteção conferida pelo Art. 833, VI, do CPC destina-se exclusivamente ao beneficiário do seguro, e não ao segurado que realiza o resgate em vida. Segundo o ministro, o seguro de vida resgatável tem natureza híbrida — parte securitária e parte de investimento — e, após o resgate, perde o caráter alimentar e protetivo, equiparando-se a aplicações financeiras comuns.

Para o STJ, uma vez efetuado o resgate, o valor passa a integrar o patrimônio livre do segurado, não podendo mais ser protegido sob o pretexto de garantir o mínimo existencial. Assim, o montante torna-se penhorável, salvo se comprovado que se enquadra na hipótese do Art. 833, X, do CPC — valores depositados como reserva de poupança até o limite de 40 salários mínimos.

O julgamento consolida a distinção entre seguro de vida tradicional (impenhorável por sua natureza alimentar) e seguro de vida resgatável, que pode ser convertido em investimento. O STJ reconhece que a proteção da impenhorabilidade não pode ser ampliada de modo a acobertar patrimônio disponível do devedor, sob pena de desvirtuar a finalidade da norma.

Para os operadores do Direito, a decisão reforça a necessidade de analisar a natureza jurídica dos produtos financeiros híbridos antes de aplicar a regra da impenhorabilidade. A partir do precedente, só o beneficiário do seguro tradicional — e não o segurado que resgata valores — poderá invocar a proteção do Art. 833, VI, do CPC.

O acórdão reafirma o equilíbrio entre a proteção do devedor e o direito do credor à execução efetiva, reconhecendo que a impenhorabilidade não pode servir como escudo patrimonial. Contudo, a decisão também impõe ao Judiciário e às partes o desafio de distinguir, na prática, quando o seguro de vida é instrumento de proteção familiar e quando se torna mera aplicação financeira, exigindo análise minuciosa dos contratos.

InovAção

IA e pesquisa jurisprudencial: como evitar erros e alucinações

Com a popularização de ferramentas de IA generativa, advogados têm recorrido cada vez mais a modelos como ChatGPT, Claude e Gemini para agilizar pesquisas jurisprudenciais. A promessa é tentadora: localizar precedentes relevantes em segundos, sem navegar entre sites e portais judiciais. Contudo, esse ganho de velocidade traz um risco proporcional — o das “alucinações jurídicas”, quando a IA inventa ementas, cita artigos inexistentes ou distorce fundamentos de decisões reais.

Essas falhas não são meros lapsos técnicos. No contexto jurídico, podem comprometer a credibilidade profissional, gerar petições imprecisas e, em casos graves, induzir o julgador ao erro. Por isso, compreender como prevenir e corrigir alucinações é hoje parte essencial da prática advocatícia digital.

Segundo especialistas em tecnologia jurídica, as alucinações ocorrem quando o modelo é solicitado a gerar conteúdo sem referência a uma base de dados confiável. Diferentemente dos sistemas de pesquisa jurisprudencial tradicionais — como o DataJud ou o Jusbrasil —, os modelos generativos não acessam diretamente os bancos oficiais de tribunais, mas produzem respostas com base em padrões linguísticos, o que os torna suscetíveis à invenção plausível, mas falsa.

A prevenção começa na forma de construir o prompt. A IA precisa ser instruída a trabalhar com transparência e limitação de escopo. Solicitações amplas (“decisões recentes sobre responsabilidade civil”) costumam induzir erros. Já comandos mais detalhados — informando o tribunal, o período, o número de processo se conhecido, e o desfecho pretendido — reduzem drasticamente as chances de geração imprecisa. Exemplo: “Busque decisões do STJ entre 2021 e 2024 que tenham reconhecido a responsabilidade objetiva de hospitais por falha em equipamentos médicos, e forneça os números dos processos e as fontes oficiais.”

Além da delimitação, há boas práticas recomendadas para uso seguro:

  • Exigir fontes verificáveis: sempre peça que a IA indique o número do processo e o tribunal, e valide manualmente no site oficial antes de citar.

  • Cruzar a pesquisa com bases públicas: sistemas como DataJud, e-STJ e Jusbrasil oferecem APIs ou consultas gratuitas que podem confirmar os resultados.

  • Evitar resumos prontos de ementas: prefira solicitar o link para o acórdão completo e, se possível, pedir à IA apenas a síntese interpretativa após conferência humana.

  • Usar IA como apoio, não substituição: o modelo pode ajudar na triagem, mas o raciocínio jurídico e a conferência final continuam sendo humanos.

A tendência é que, em breve, as próprias ferramentas jurídicas incorporem mecanismos internos de checagem. Até lá, o advogado precisa exercer um novo tipo de diligência: a diligência algorítmica — o cuidado em não delegar à máquina o que ainda exige prudência humana.

A IA é, sem dúvida, uma aliada poderosa para o profissional que souber usá-la com critério. O segredo não é confiar cegamente, mas dialogar com ela de modo consciente, transformando a tecnologia em parceira de pesquisa — e não em fonte de erro.

Fechamos mais uma semana de conteúdo, e é sempre bom ter você aqui. Agora, que tal fazer essa leitura chegar mais longe? Encaminhe a Jus Civile para um colega — a próxima boa conversa jurídica pode começar com um clique. 🦉📚

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