- Jus Civile
- Posts
- Jus Civile #61
Jus Civile #61

A excelência não mora no começo — ela se esconde no final. na revisão, no acabamento, no detalhe que ninguém vê, mas todo mundo sente. É ali que o bom vira extraordinário. 🦉
Institutos
Interversão da posse
No Direito Civil, a posse não se define apenas pelo contato físico com a coisa, mas pela intenção de agir como titular do direito. Por isso, quem exerce a posse em nome de outro — como o locatário, o comodatário, o depositário ou o usufrutuário — não é, propriamente, possuidor, mas mero detentor, nos termos do Art. 1.198 do Código Civil. Contudo, em certas circunstâncias, a relação jurídica pode se modificar, e o detentor passa a exercer a posse em nome próprio. Esse fenômeno, reconhecido pela doutrina e pela jurisprudência, é conhecido como interversão da posse.
O fundamento normativo da interversão está no Art. 1.203 do Código Civil, que dispõe: “Salvo prova em contrário, entende-se manter a posse o mesmo caráter com que foi adquirida.” Assim, presume-se que o detentor continue exercendo a posse em nome alheio, até que demonstre, por atos inequívocos, a intenção de possuí-la para si.
🔹 A interversão da posse é a modificação do título possessório, quando o detentor passa a agir como possuidor em nome próprio, rompendo a subordinação jurídica anterior.
Para que ocorra, a doutrina exige três elementos:
Mudança da causa possessionis, ou seja, do fundamento pelo qual se detinha a coisa;
Exteriorização clara da intenção de possuir para si, de forma pública e inequívoca;
Ciência do antigo possuidor ou proprietário, pois a interversão não pode ocorrer às ocultas.
A simples permanência no bem após o término do contrato, ou a mera omissão do proprietário, não configuram interversão. É necessário que o detentor pratique atos objetivos de domínio, como negar o direito do antigo titular, recusar a devolução da coisa ou realizar atos típicos de proprietário, a exemplo de vender, arrendar ou cercar o imóvel em nome próprio.
A importância prática do instituto é evidente nas ações de usucapião. O prazo para aquisição da propriedade só começa a fluir a partir da interversão da posse, isto é, do momento em que o detentor passa a exercer o domínio em nome próprio. Assim, quem ocupava um imóvel em comodato ou locação só poderá usucapir se demonstrar a ruptura da subordinação jurídica e a posse exclusiva, com animus domini.
O STJ tem reiterado esse entendimento, afirmando que a mera inércia do proprietário não converte detenção em posse, sendo indispensável demonstração de comportamento ativo e hostil ao direito anterior. O instituto, portanto, reafirma a natureza subjetiva e dinâmica da posse: ela nasce do fato e da intenção — e se transforma, juridicamente, quando essa intenção se inverte de modo público e inequívoco.
Em síntese, a interversão da posse não é uma ficção jurídica, mas um fato social reconhecido pelo Direito. É o momento em que a posse deixa de ser subordinada e passa a ser soberana — quando o detentor, em vez de guardar, age como dono.
Latim jurídico
Scientia fraudis
A expressão scientia fraudis significa literalmente “ciência da fraude” e é usada para designar o conhecimento, por parte do terceiro adquirente, de que determinado ato ou negócio jurídico foi praticado em prejuízo de credores. Trata-se de elemento subjetivo essencial para a configuração da fraude contra credores — instituto previsto nos Arts. 158 a 165 do Código Civil.
Para que o ato seja anulado, não basta a simples diminuição patrimonial do devedor (eventus damni); é necessário também que o adquirente tenha agido com scientia fraudis, ou seja, que soubesse (ou devesse saber) da intenção do devedor de frustrar o adimplemento de suas obrigações. Essa combinação entre dano e dolo caracteriza a má-fé objetiva, permitindo a declaração de ineficácia do negócio em relação aos credores.
📌 Exemplo prático: um empresário endividado vende, por valor irrisório, seu único imóvel a um amigo próximo, logo após ter sido citado em execução judicial. Se ficar demonstrado que o comprador tinha conhecimento da situação financeira do vendedor e do risco de insolvência, estará configurada a scientia fraudis. Nessa hipótese, os credores poderão propor ação pauliana, buscando a anulação do negócio e o retorno do bem ao patrimônio do devedor para satisfação do crédito.
Atualidades
STJ decide que cláusula arbitral não impede a execução judicial de título extrajudicial

Imagem: criação Jus Civile
A Terceira Turma do STJ, sob relatoria da Ministra Nancy Andrighi, firmou importante entendimento no REsp 2.167.089/RJ: a existência de cláusula compromissória arbitral em contrato não impede o credor de ajuizar ação de execução de título extrajudicial perante o Judiciário.
O caso envolveu contrato de fornecimento de produtos alimentícios entre duas empresas, com cláusula que previa a resolução de conflitos por arbitragem. Ao ajuizar execução baseada em duplicatas protestadas, a credora viu o processo ser suspenso pelo Tribunal de origem, que entendeu que a validade do título deveria ser previamente analisada pelo juízo arbitral.
Para o STJ, a arbitragem e a jurisdição estatal possuem competências complementares, não excludentes. Embora o árbitro tenha competência para decidir sobre a validade e eficácia do contrato e da cláusula compromissória, apenas o Poder Judiciário possui poder de coerção para promover a execução forçada.
A Corte reafirmou que não é razoável exigir que o credor inicie um procedimento arbitral apenas para obter novo título executivo, quando já dispõe de documento líquido, certo e exigível (Art. 784, I e III, do CPC). Assim, o ajuizamento da execução não depende de prévia autorização arbitral, e sua suspensão só se justifica quando houver efetiva instauração do procedimento arbitral e pedido formal ao juízo da execução.
Nas palavras da relatora: “a suspensão da execução, embora possível, não é automática; não decorre da existência da cláusula compromissória arbitral, ipso facto.” No caso concreto, como a empresa devedora não havia sequer instaurado o procedimento de arbitragem, o STJ determinou o prosseguimento da execução judicial.
O precedente reforça a autonomia e a força executiva dos títulos extrajudiciais, mesmo quando oriundos de contratos com cláusula arbitral. A decisão preserva o equilíbrio entre os dois sistemas — arbitral e judicial — e evita o uso estratégico da cláusula de arbitragem como manobra protelatória.
Para credores, o julgado representa segurança jurídica e agilidade processual; para devedores, evidencia que a simples menção à arbitragem não suspende automaticamente a execução, sendo necessário comprovar a efetiva instauração do procedimento arbitral.
A posição da Terceira Turma consolida a compreensão de que a jurisdição estatal continua sendo a única dotada de coercibilidade, e que a arbitragem, embora autônoma, não substitui a execução judicial quando o título é certo, líquido e exigível.
InovAção
IA preditiva no Judiciário: o avanço dos algoritmos na antecipação de decisões e seus riscos éticos
O Judiciário brasileiro tem se aproximado de uma fronteira que, há poucos anos, parecia distante: o uso de inteligência artificial preditiva para estimar resultados processuais, tempos médios de tramitação e padrões de julgamento. A tendência, já consolidada em países como França, China e Estados Unidos, começa a ganhar corpo no Brasil, com o apoio do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e de iniciativas como o DataJud, o Sinapses, e os projetos locais de jurimetria nos Tribunais de Justiça.
Na prática, a IA preditiva consiste na aplicação de modelos estatísticos e de aprendizado de máquina sobre grandes volumes de dados judiciais — petições, decisões, sentenças e acórdãos — para identificar padrões de comportamento decisório. Com isso, é possível estimar, por exemplo, a probabilidade de êxito em determinada tese jurídica, o tempo médio de tramitação de um processo ou a postura recorrente de um tribunal sobre um tema específico.
O uso dessas tecnologias tem objetivos declaradamente administrativos: auxiliar na gestão de demandas repetitivas, prever congestionamentos processuais e orientar políticas de alocação de recursos humanos e tecnológicos. No entanto, a linha que separa a gestão eficiente da predição decisória é tênue. Alguns tribunais, como o TJSP e o TJDFT, já realizam experimentos internos para classificar petições e sugerir minutas de decisão com base em julgamentos anteriores — uma forma embrionária de julgamento assistido por IA.
Os potenciais benefícios são inegáveis. A IA preditiva pode trazer coerência e previsibilidade ao sistema, reduzindo discrepâncias entre decisões e evitando a loteria judicial. Para advogados, abre-se a possibilidade de antecipar estratégias e dimensionar riscos processuais com base em dados objetivos, e não apenas em percepções empíricas.
Mas as vantagens vêm acompanhadas de dilemas éticos e estruturais. O primeiro deles é o risco de reforço de vieses institucionais: algoritmos treinados com dados passados tendem a reproduzir padrões históricos de julgamento, cristalizando distorções ou injustiças. Há também a questão da opacidade algorítmica — a dificuldade de compreender como o modelo chegou àquela previsão — e o desafio de garantir responsabilidade e transparência em um ambiente que, por definição, exige motivação e publicidade das decisões.
Além disso, a aplicação da IA preditiva no Judiciário levanta debates sobre o livre convencimento motivado. Até que ponto a máquina auxilia — e até que ponto condiciona — a atuação do juiz? Se a estatística indicar que 90% das ações semelhantes foram julgadas improcedentes, o magistrado resistirá à tendência? E mais: como evitar que advogados passem a litigar de modo “algorítmico”, moldando petições não pela convicção jurídica, mas pelo perfil estatístico de êxito?
O CNJ tem buscado enfrentar parte dessas questões por meio de diretrizes éticas, como a Resolução nº 332/2020, que estabelece princípios para o uso de IA no Poder Judiciário, incluindo transparência, governança, não discriminação e supervisão humana obrigatória. Ainda assim, o avanço da IA preditiva exigirá uma revisão cultural mais profunda — tanto na magistratura quanto na advocacia.
No fim, o movimento é inevitável. O Judiciário caminha para um modelo em que decisões assistidas por dados serão a regra, e não a exceção. A advocacia que compreender esse novo ambiente — aprendendo a ler os números por trás dos precedentes — terá vantagem estratégica. A grande questão, contudo, permanece: até onde podemos permitir que o futuro da Justiça seja estatisticamente previsível sem esvaziar o seu caráter humano?
Obrigado por acompanhar até o fim. Agora é sua vez: compartilhe a newsletter e nos ajude a manter a Jus Civile em voo alto, semana após semana. 🦉📚
Reply