Jus Civile #60

Há leis que mudam. Há entendimentos que os tribunais ajustam. E há quem esteja sempre atento. Pegue seu café e siga conosco em mais uma edição da Jus Civile! 🦉

Institutos

Emenda da petição inicial

A petição inicial é o ato inaugural do processo, responsável por delimitar a causa de pedir e o pedido, instaurando a relação jurídica processual. Por isso, deve atender aos requisitos previstos no Art. 319 do CPC, que incluem a indicação das partes, exposição dos fatos e fundamentos jurídicos, pedido, valor da causa, provas e opção pela audiência de conciliação. Quando a inicial não preenche esses requisitos ou apresenta defeitos capazes de dificultar o julgamento de mérito, o juiz não deve indeferi-la de imediato: a lei assegura ao autor a possibilidade de emenda ou complementação, nos termos do Art. 321 do CPC.

Na prática, a emenda pode abranger diversas situações: complementação de documentos indispensáveis, correção de erro na qualificação das partes, adequação do valor da causa, esclarecimento do pedido ou mesmo ajustes na narrativa fática. A exigência judicial deve ser clara e específica, indicando precisamente quais irregularidades devem ser corrigidas, sob pena de nulidade por violação ao contraditório e à ampla defesa.

O prazo para emenda é de 15 dias úteis, conforme o Art. 321 do CPC, e sua inobservância conduz ao indeferimento da inicial (Art. 330, IV, do CPC). Esse indeferimento, por sua vez, enseja a extinção do processo sem resolução do mérito (Art. 485, I, do CPC), mas é impugnável por meio de apelação.

Importante destacar que a necessidade de emenda não se confunde com a possibilidade de alteração do pedido ou da causa de pedir, regulada pelo Art. 329 do CPC. Enquanto a emenda busca apenas corrigir vícios formais ou complementares, a alteração do pedido implica verdadeira modificação do objeto da demanda, sujeita a limites mais restritivos.

🔹 A jurisprudência do STJ é firme no sentido de que o juiz tem o dever de oportunizar a emenda, sendo indevido o indeferimento da inicial sem prévia intimação do autor para corrigir falhas sanáveis.

O instituto da emenda da inicial reflete a diretriz fundamental do processo civil contemporâneo: privilegiar a solução de mérito, evitando que falhas formais inviabilizem o direito de ação. Cabe ao advogado, portanto, redigir a petição inicial com rigor técnico, mas também estar atento às intimações judiciais que apontem a necessidade de ajustes. A boa utilização dessa ferramenta assegura a efetividade da jurisdição e protege o processo de nulidades evitáveis.

Latim jurídico

Emptio spei

A expressão emptio spei significa literalmente “compra da esperança” e designa um contrato aleatório em que a aquisição se dá sobre uma expectativa incerta, assumindo o comprador o risco de nada receber. O exemplo clássico remonta ao Direito Romano: a venda da sorte de uma rede de pesca, em que o pescador se obriga a entregar ao comprador aquilo que vier, ou mesmo nada, já que a incerteza do resultado é a essência do negócio.

No Direito Civil moderno, a emptio spei encontra eco nos contratos em que o risco é elemento central, distinguindo-se da emptio rei speratae (“compra de coisa esperada”), em que a eficácia depende da efetiva existência futura do objeto. Na emptio spei, o preço é devido ainda que o resultado esperado não se concretize, pois o objeto da contratação é a própria chance.

📌 Exemplo prático: um colecionador paga antecipadamente a um garimpeiro pela possibilidade de encontrar uma pedra preciosa em determinada área. Se nada for encontrado, o comprador não pode exigir a devolução do valor, pois contratou a própria esperança do achado — caracterizando a emptio spei. Já se tivesse contratado apenas pela pedra, condicionando o pagamento à sua efetiva descoberta, tratar-se-ia de emptio rei speratae.

Atualidades

STJ garante ao ex-cônjuge direito a lucros e dividendos de cotas sociais até a apuração de haveres

Imagem: criação Jus Civile

A Terceira Turma do STJ decidiu que o ex-cônjuge tem direito a participar dos lucros e dividendos distribuídos pela sociedade empresária até a efetiva apuração e pagamento de seus haveres, quando as cotas sociais foram adquiridas na constância do casamento. O julgamento ocorreu no REsp 2.223.719/SP, relatado pela Ministra Nancy Andrighi.

O caso teve origem em ação de dissolução parcial de sociedade cumulada com apuração de haveres. Após a separação de fato do casal, ficou definido no divórcio que o ex-marido teria direito à meação das cotas sociais adquiridas pela ex-esposa durante a união. A controvérsia girava em torno da extensão desse direito: se o cônjuge não sócio poderia ou não participar da divisão de lucros após a separação até a liquidação dos haveres.

O STJ reafirmou que a separação de fato põe fim ao regime de bens, mas inaugura um estado de condomínio sobre os bens comuns. Assim, enquanto não houver a apuração dos haveres e o pagamento correspondente, o ex-cônjuge que recebeu a meação das cotas sociais é titular de direitos patrimoniais sobre elas, embora não participe da gestão da sociedade.

Nessa condição, passa a ser considerado um “cotista anômalo”, ou seja, alguém que detém os direitos econômicos da participação societária, mas não os direitos pessoais de sócio. Por isso, com fundamento nos Arts. 1.319 e 1.027 do CC, o Tribunal concluiu que ele deve concorrer nos frutos gerados pelas cotas — isto é, nos lucros e dividendos — até a apuração final dos haveres.

O TJSP havia limitado o direito do ex-cônjuge à participação nos lucros e dividendos apenas até a data da separação de fato. O STJ, entretanto, reformou esse entendimento, reconhecendo que tal limitação implicaria enriquecimento sem causa do cônjuge sócio que continuou usufruindo sozinho das cotas comuns. Assim, fixou-se que o ex-cônjuge tem direito à meação dos frutos societários desde a separação de fato até a efetiva apuração e pagamento dos haveres, período em que subsiste um condomínio sobre as participações sociais.

A Turma também enfrentou discussão sobre a metodologia de cálculo para avaliação das participações societárias. Reiterando jurisprudência consolidada, o colegiado fixou que, na omissão do contrato social, deve-se adotar exclusivamente o balanço de determinação (Art. 606 do CPC), afastando a possibilidade de cumulação com o método de fluxo de caixa descontado, por envolver projeções futuras incertas.

O precedente possui grande relevância para disputas de natureza societária em contextos de dissolução conjugal. Ao reconhecer o direito do ex-cônjuge à participação nos frutos das cotas até a liquidação, o STJ:

  • Evita enriquecimento sem causa do sócio que permanece na sociedade, usufruindo sozinho de lucros provenientes de patrimônio comum;

  • Reforça a distinção entre aspecto patrimonial e pessoal das participações societárias, preservando a affectio societatis apenas entre os sócios formais;

  • Confere maior segurança jurídica ao tratamento das cotas sociais no regime de comunhão parcial, especialmente diante da crescente complexidade das relações empresariais familiares.

A decisão equilibra a proteção patrimonial do ex-cônjuge meeiro com a preservação da autonomia da sociedade empresária. No entanto, a criação da figura do “cotista anômalo” mantém a tensão entre o direito de propriedade sobre os frutos e a estabilidade da gestão societária. A solução do STJ privilegia o aspecto econômico do vínculo e previne abusos, mas evidencia a necessidade de clareza contratual nos atos constitutivos para evitar litígios prolongados.

InovAção

Nova versão do sistema Sniper, do CNJ

O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) apresentou, em setembro de 2025, a nova versão do Sistema Nacional de Investigação Patrimonial e Recuperação de Ativos (Sniper), voltado a dar mais eficiência aos pedidos judiciais de bloqueio e constrição de bens. A ferramenta, já integrada à Plataforma Digital do Poder Judiciário (PDPJ-Br) e ao Jus.br, foi anunciada pelo ministro Luís Roberto Barroso, presidente do CNJ e do STF, durante sessão plenária.

A atualização representa um avanço expressivo. Agora, o Sniper permite pesquisas patrimoniais integradas em múltiplas bases de dados e possibilita o envio direto de solicitações de bloqueio pela própria plataforma. Isso traz ganhos evidentes de tempo e de segurança, já que cada consulta gera automaticamente uma certidão eletrônica — positiva ou negativa — que passa a compor os autos, evitando o esquecimento de diligências e ampliando a rastreabilidade do processo.

Entre as bases já conectadas estão o Renajud (veículos), o Anacjud (aviação civil), o Sistema Nacional de Gestão de Bens (SNGB), o SERP/ONR (registros imobiliários) e o Sisbajud (instituições financeiras). Com essa integração, magistrados e servidores ganham uma visão patrimonial mais completa e em poucos segundos conseguem mapear vínculos relevantes. Para os advogados, isso significa lidar com um Judiciário mais ágil e menos suscetível a dispersão de informações.

Na prática, o Sniper impacta diretamente a advocacia cível, sobretudo em execuções, recuperações judiciais e ações voltadas à responsabilização por ilícitos patrimoniais. Para o exequente, a ferramenta promete acelerar a satisfação do crédito, evitando que devedores usem a fragmentação das bases para ocultar bens. Já para o executado, abre-se a necessidade de atenção redobrada: constrições antes demoradas poderão ser efetivadas de forma quase imediata, reforçando a importância de estratégias de defesa pautadas pela proporcionalidade e pelo princípio da menor onerosidade.

Segundo Dorotheo Barbosa Neto, juiz auxiliar da presidência do CNJ, a nova versão garante mais rapidez e precisão na identificação de vínculos patrimoniais, com reflexos não apenas na recuperação de créditos privados, mas também no combate à corrupção e à lavagem de dinheiro. Até o fim de 2025, está prevista a incorporação de novos módulos, especialmente para bloqueio de imóveis e maior integração com registros públicos, o que ampliará ainda mais o alcance do sistema.

Em síntese, o novo Sniper inaugura uma fase de maior transparência, velocidade e integração no rastreamento patrimonial, aproximando o Judiciário de uma visão mais sistêmica e digital do processo de execução. Para a advocacia, conhecer seus alcances e limitações será indispensável para atuar estrategicamente nesse novo ambiente de execução inteligente.

Se esta leitura valeu o seu tempo, pode valer o de mais alguém também. Compartilhe a newsletter com quem possa se interessar e ajude a espalhar boas ideias no mundo jurídico. 🦉📚

Reply

or to participate.