Jus Civile #59

Nem toda divergência é conflito — algumas são só o início de uma boa tese. Pegue seu café e tenha uma excelente leitura! 🦉

Institutos

Fraude à execução

Quando o devedor, ciente da existência de demanda judicial capaz de comprometer seu patrimônio, aliena bens com o objetivo de frustrar a efetividade da sentença, está diante de uma fraude à execução — instituto de origem jurisprudencial, hoje expressamente previsto no Art. 792 do CPC. Trata-se de vício jurídico que torna ineficaz o ato de disposição de bens em relação ao exequente, ainda que o negócio aparente legalidade formal. Em outras palavras, quem compra bem litigioso de devedor em execução, assume o risco de perder a aquisição.

A fraude à execução não exige prova de má-fé do adquirente quando o bem alienado já estava submetido a algum tipo de constrição judicial (como penhora ou arresto), ou quando a ação já estava ajuizada e tramitando regularmente. Nessas hipóteses, presume-se que o adquirente tinha meios objetivos de verificar a existência da demanda, e, portanto, sua boa-fé é irrelevante para fins de eficácia do negócio.

O Art. 792 enumera as hipóteses clássicas de fraude à execução, entre elas:

  • Quando sobre o bem recai penhora, arresto ou indisponibilidade;

  • Quando a ação estiver registrada no competente registro de imóveis ou no registro de bens móveis;

  • Quando, ao tempo da alienação, tramitava contra o devedor ação capaz de reduzir à insolvência o seu patrimônio.

Este último caso é o mais controverso — e o mais comum na prática. Aqui, a caracterização da fraude exige a demonstração da insolvência do devedor e a ciência, ainda que presumida, do adquirente quanto à existência da demanda. A jurisprudência do STJ, inclusive, admite que a ausência de registro da ação não impede o reconhecimento da fraude, desde que haja prova de que o terceiro sabia, ou deveria saber, da existência do processo.

A consequência direta da fraude à execução é a ineficácia da alienação em relação ao exequente, nos termos do Art. 792, caput, independentemente de ação autônoma de anulação ou revogação. Basta alegá-la no próprio processo de execução ou cumprimento de sentença, por meio de simples petição incidental. Já o terceiro adquirente, para se defender, poderá opor embargos de terceiro, desde que comprove sua boa-fé e a inexistência dos pressupostos da fraude.

Ao advogado, cabe não apenas identificar e impugnar atos de disposição fraudulentos, mas também orientar seus clientes (tanto credores quanto adquirentes) sobre os riscos envolvidos na aquisição de bens de pessoas demandadas judicialmente. A prática forense está repleta de disputas envolvendo imóveis vendidos durante ações de cobrança, veículos transferidos após citações e esvaziamentos patrimoniais deliberados.

Em tempos de tecnologia e integração de dados, a boa-fé do adquirente já não pode mais ser presumida com facilidade. Cabe-lhe diligência, consulta aos registros públicos e cautela redobrada.

Latim jurídico

Eventus damni

A expressão eventus damni designa o evento danoso — o fato que produz prejuízo e que, no campo da responsabilidade civil, exige avaliação quanto à existência de culpa, nexo causal e dever de indenizar. Trata-se da ocorrência concreta do dano, elemento indispensável à configuração da obrigação de reparar, conforme o Art. 927 do Código Civil.

O eventus damni se distingue do risco ou da mera potencialidade de dano: ele representa a efetiva materialização de um prejuízo jurídico relevante, seja patrimonial ou extrapatrimonial. Por isso, em muitas ações indenizatórias, a controvérsia se concentra não apenas na conduta do agente, mas principalmente na demonstração do dano e de sua vinculação causal ao ato imputado.

📌 Exemplo prático: um condomínio ajuíza ação contra uma construtora alegando que o prédio apresenta vícios estruturais. No entanto, a perícia revela que os problemas são superficiais, de fácil reparo, sem comprometer a segurança ou funcionalidade do imóvel. Nesse cenário, a ausência de um eventus damni real impede o reconhecimento da responsabilidade civil, ainda que haja defeito na execução da obra. Sem dano concreto, não há que se falar em indenização.

Atualidades

TJSP mantém anulação de penhora de cotas de sociedade limitada unipessoal sem incidente de desconsideração

Imagem: criação Jus Civile

A 37ª Câmara de Direito Privado do TJSP, no processo n° 2160777-51.2025.8.26.0000, confirmou decisão que anulou a penhora de cotas de empresa unipessoal em execução de título extrajudicial. O colegiado entendeu que, tratando-se de sociedade limitada unipessoal, o patrimônio da pessoa jurídica não se confunde com o do sócio, de modo que a constrição direta das cotas sociais depende da instauração prévia de incidente de desconsideração da personalidade jurídica.

O caso envolveu execução proposta pelo Banco Votorantim S.A., que, após diversas tentativas frustradas de localizar bens, buscou a penhora das cotas que o executado possuía em sociedade unipessoal. O juízo de 1ª instância anulou a medida, fundamentando que a autonomia patrimonial da sociedade, prevista no Art. 1.052 do Código Civil, exige respeito ao devido processo legal antes de atingir patrimônio da pessoa jurídica.

O relator, Desembargador Pedro Kodama, ressaltou que, embora o Art. 835, IX, do CPC preveja a possibilidade de penhora de cotas sociais, a situação das sociedades unipessoais é peculiar: ainda que exista apenas um sócio, a lei lhes confere personalidade jurídica própria, distinta da pessoa física do titular.

Assim, a constrição patrimonial só pode ocorrer mediante desconsideração da personalidade jurídica, nos termos dos Arts. 133 e seguintes do CPC, com garantia de contraditório e ampla defesa. A decisão destacou precedentes recentes do próprio TJSP, em que se consolidou a necessidade do incidente mesmo após a edição das Leis 13.874/2019 e 14.195/2021, que reforçaram a autonomia patrimonial da sociedade limitada unipessoal.

O acórdão reafirma que a sociedade unipessoal não se confunde com o empresário individual: embora formada por apenas um sócio, ela goza de autonomia patrimonial plena. Para credores, a decisão alerta que a penhora direta de cotas sociais em execuções contra o sócio unipessoal não é admitida sem o devido incidente de desconsideração.

Na prática, o julgado reforça a segurança jurídica para empreendedores individuais que optam pela forma de sociedade limitada unipessoal, preservando o patrimônio da pessoa jurídica e garantindo que só possa ser atingido quando houver indícios de abuso, fraude ou confusão patrimonial devidamente demonstrados.

InovAção

Napkin: visual law em minutos, direto do texto ao diagrama

O Napkin.ai é uma ferramenta de inteligência artificial voltada à criação de elementos visuais a partir de textos. Sua proposta é simples, mas poderosa: transformar descrições em infográficos, mapas mentais, diagramas de fluxo ou quadros comparativos, de forma rápida e sem exigir conhecimento prévio em design. Essa funcionalidade desperta especial interesse no campo do visual law, em que a clareza e a didática da comunicação se tornam estratégicas.

Na prática, o usuário insere um texto — seja uma explicação conceitual, uma lista de etapas processuais ou um conjunto de cláusulas contratuais — e a ferramenta gera automaticamente uma visualização compatível. O resultado inicial pode ser editado, com ajustes de cores, ícones e fontes, o que permite adequar o material ao estilo institucional do escritório ou ao perfil do cliente. Além disso, o Napkin possibilita exportar os visuais em formatos como PNG, SVG, PDF ou PowerPoint, facilitando a incorporação em petições, relatórios ou apresentações.

O potencial de uso para advogados é considerável. Em pareceres complexos, um mapa conceitual pode evidenciar a relação entre normas e jurisprudência. Em uma execução, um fluxograma pode organizar prazos e etapas de forma intuitiva. Em reuniões com clientes, infográficos podem tornar cláusulas contratuais mais transparentes, reduzindo ruídos de compreensão. Trata-se, portanto, de uma ferramenta que contribui para democratizar a informação jurídica, ao permitir que conceitos técnicos sejam visualizados com mais clareza.

Apesar das vantagens, o Napkin apresenta limitações que merecem atenção. A qualidade do resultado depende diretamente da forma como o texto é estruturado. Se o insumo for abstrato, com excesso de jargão ou sem hierarquia clara, o diagrama tende a ser genérico ou confuso. Além disso, embora a ferramenta aceite textos em português, sua performance costuma ser melhor em inglês, o que pode exigir testes e ajustes para o uso jurídico nacional. Por fim, o conjunto de modelos disponíveis, ainda que variado, pode se tornar repetitivo em usos mais intensivos.

Em termos práticos, algumas dicas otimizam o uso da ferramenta no Direito:

  • Estruture o texto em tópicos claros, indicando etapas ou relações de causa e efeito, para facilitar a interpretação pela IA.

  • Prefira usar o Napkin em materiais auxiliares — como resumos executivos, relatórios de compliance ou apresentações de sustentação oral — em vez de substituir a peça formal.

  • Sempre revise o resultado, garantindo que o diagrama reflita corretamente os conceitos jurídicos, sem distorções ou omissões.

O Napkin.ai, portanto, é uma adição valiosa ao arsenal de visual law. Ele não substitui a análise jurídica nem a redação técnica, mas funciona como aliado na clareza e no impacto comunicacional, tornando relatórios, petições e reuniões mais compreensíveis. Em um cenário em que a advocacia precisa dialogar não apenas com juízes, mas também com clientes, gestores e equipes multidisciplinares, ferramentas como essa podem fazer diferença no modo de transmitir informação.

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