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Jus Civile #58

Urgência demais costuma gerar argumento de menos. Nesta edição, abrimos espaço para o que pede leitura atenta — e não resposta automática. Pegue o seu café e venha conosco! 🦉☕
Institutos
Prequestionamento recursal
Os recursos dirigidos aos tribunais superiores, como o Recurso Especial (REsp) e o Recurso Extraordinário (RE), estão submetidos a requisitos de admissibilidade mais rigorosos que os recursos ordinários. Entre eles, um dos mais importantes — e também mais debatidos — é o prequestionamento, ou seja, a necessidade de que a matéria jurídica objeto do recurso tenha sido examinada pelo tribunal de origem, de forma expressa ou, em certos casos, implícita.
No âmbito do Recurso Especial, o prequestionamento é exigência indispensável, ainda que o acórdão recorrido contenha erro ou afronta à lei federal. Isso porque o STJ não atua como terceira instância: sua função é uniformizar a interpretação da legislação federal, não reexaminar fatos ou decidir teses não debatidas na origem. Assim, se o tema não foi enfrentado pelo tribunal de segunda instância, o recurso será considerado inadmissível, por ausência de prequestionamento.
A jurisprudência do STJ evoluiu para reconhecer três formas de prequestionamento:
Explícito: quando o tribunal de origem analisa expressamente os dispositivos legais tidos por violados;
Implícito: quando a tese é enfrentada, mesmo sem citação literal do artigo de lei;
Ficto (ou presumido): previsto na Súmula 211 do STJ e no Art. 1.025 do CPC, ocorre quando o recorrente opõe embargos de declaração visando suprir a omissão, e estes são rejeitados — havendo, assim, tentativa formal de prequestionar a matéria.
A introdução do Art. 1.025 no CPC reforçou essa lógica: ao rejeitar embargos de declaração que buscam debater um ponto omitido, presume-se prequestionada a matéria, para fins de viabilizar o recurso especial ou extraordinário. Contudo, essa presunção não é absoluta — a jurisprudência ainda exige que os embargos tenham sido adequadamente fundamentados, com indicação precisa da omissão e dos dispositivos legais que se busca prequestionar.
Na prática, é essencial que o advogado identifique, já na fase de apelação ou agravo, quais dispositivos legais deverão ser prequestionados, e formule embargos de declaração sempre que o tribunal de origem deixar de enfrentá-los. Trata-se de um cuidado técnico que pode determinar o sucesso ou o fracasso de toda a estratégia recursal.
Em suma, o prequestionamento é mais que um formalismo processual: é a garantia de que o tribunal superior não será surpreendido com teses novas, permitindo que atue dentro de seu papel constitucional de uniformização do Direito. E para o advogado, é a confirmação de que as teses decisivas da causa passaram pelo necessário crivo da instância inferior.
Latim jurídico
Voluntas testatoris
A expressão voluntas testatoris significa “vontade do testador” e constitui o princípio fundamental na interpretação das disposições testamentárias. Em matéria de sucessão, a vontade do testador deve ser respeitada sempre que possível, mesmo que não esteja expressa com precisão técnica, desde que seja juridicamente válida e se possa extrair sua intenção com razoável segurança.
Esse princípio atua como diretriz interpretativa, permitindo ao intérprete — seja o juiz, seja o tabelião — suprir lacunas ou esclarecer ambiguidades do testamento com base no contexto e nas circunstâncias da declaração de última vontade, desde que respeitados os limites legais. O Código Civil, embora não utilize expressamente a expressão voluntas testatoris, acolhe sua lógica ao prever regras de interpretação que buscam preservar a eficácia da disposição testamentária (ex.: Art. 1.899).
📌 Exemplo prático: em testamento particular, o testador dispõe: “deixo minha casa de praia para meu afilhado Bruno, por tudo o que ele fez por mim.” Após sua morte, descobre-se que ele possuía dois imóveis no litoral, ambos utilizados ocasionalmente. Apesar da imprecisão, a convivência do testador com Bruno ocorria predominantemente em um dos imóveis, onde passaram muitos verões. Diante disso, o juiz, com base na voluntas testatoris, poderá reconhecer que essa era a casa a que o testador se referia, garantindo a eficácia da disposição e evitando sua anulação por ambiguidade.
Atualidades
STJ: fraude bancária com “golpe do boleto” e vazamento de dados gera dano moral presumido

Imagem: criação Jus Civile
A Terceira Turma do STJ, no REsp 2.187.854/SP, sob relatoria da ministra Nancy Andrighi, decidiu que a fraude bancária viabilizada pelo vazamento de dados pessoais do consumidor configura dano moral presumido (in re ipsa), impondo às instituições financeiras o dever de indenizar não apenas os prejuízos materiais, mas também os extrapatrimoniais.
O caso teve origem em ação indenizatória movida por uma consumidora vítima do chamado “golpe do boleto”. Ela pretendia quitar financiamento junto ao Banco Votorantim quando recebeu boleto fraudulento, com informações exatas sobre parcelas vincendas, valor remanescente e até a placa do veículo financiado. Tais dados, segundo o processo, só poderiam ter sido obtidos a partir dos sistemas internos da instituição bancária, revelando falha grave na prestação do serviço.
Embora o TJSP tenha reconhecido a falha do banco e determinado o ressarcimento do valor pago, afastou a indenização por danos morais, entendendo que não havia violação concreta a direitos da personalidade. O STJ reformou o acórdão, fixando indenização de R$ 8.000,00. Os fundamentos da decisão foram:
O Art. 14 do CDC consagra a responsabilidade objetiva das instituições financeiras por defeitos na prestação de serviços.
O Art. 186 e o Art. 927 do CC impõem o dever de reparar quando há ato ilícito, inclusive de natureza moral.
A falha no dever de segurança, com vazamento de dados bancários sigilosos, extrapola o mero dissabor cotidiano, pois gera sensação permanente de insegurança no consumidor.
Nesses casos, não é necessária prova de repercussão específica (como negativação ou apreensão de bem), já que o simples acesso indevido a informações privilegiadas representa violação à esfera da personalidade.
Esse julgado fortalece a linha protetiva do STJ frente aos efeitos do uso indevido e vazamento de dados pessoais em ambiente bancário, especialmente em fraudes de engenharia social. A decisão é paradigmática por consolidar o entendimento de que o dano moral decorre automaticamente quando a fraude é possibilitada pelo acesso ilícito a dados internos da instituição financeira.
Assim, instituições bancárias devem reforçar suas políticas de segurança da informação e compliance, pois não apenas respondem pelos danos materiais sofridos pelas vítimas, mas também pelos danos extrapatrimoniais decorrentes da quebra de confiança e da exposição indevida de dados sigilosos.
InovAção
Fireflies: IA assistente de reuniões
Em meio à crescente adoção de tecnologias que otimizam a rotina de profissionais do Direito, ferramentas de transcrição e análise de reuniões com IA têm ganhado espaço — e o Fireflies.ai é uma das mais populares do segmento. Com promessa de gravar, transcrever, resumir e gerar insights automáticos de encontros virtuais, a plataforma tem sido testada em reuniões internas de escritórios, atendimentos a clientes e até sessões de mediação e diligências online.
Mas o que exatamente o Fireflies entrega — e até onde sua utilidade se estende para a prática jurídica?
O Fireflies atua como um agente de reunião autônomo: o usuário conecta sua agenda (Google ou Outlook), e o sistema se encarrega de entrar nas videoconferências agendadas (Zoom, Meet, Teams) como um participante silencioso. Durante a reunião, a ferramenta grava o áudio, realiza a transcrição automática em tempo real e, ao final, gera resumos estruturados com:
Tópicos abordados;
Decisões tomadas;
Perguntas feitas;
Tarefas atribuídas.
O conteúdo transcrito é pesquisável, e o sistema permite marcar trechos importantes com comentários, categorizações e tags temáticas.
Na advocacia, o Fireflies pode ser particularmente útil para:
Organizar reuniões de estratégia processual, facilitando a documentação de decisões e encaminhamentos entre sócios ou equipes de contencioso;
Registrar atendimentos a clientes, com histórico claro das demandas apresentadas e compromissos assumidos — importante em casos de responsabilidade civil do advogado;
Produzir atas técnicas de reuniões em mediação, assembleias e compliance, com registro automatizado do que foi dito, inclusive para auditorias internas;
Transformar reuniões comerciais em pauta de follow-up, especialmente para áreas que lidam com contratos, propostas e ajustes negociais em tempo real.
Apesar de sua eficiência, o Fireflies enfrenta alguns desafios relevantes quando aplicado ao contexto jurídico brasileiro. O primeiro deles é a precisão da transcrição em português, que ainda apresenta inconsistências com termos técnicos, regionalismos e ruídos de áudio. Além disso, há restrições éticas e legais quanto à gravação de reuniões, sobretudo em ambientes que exigem consentimento prévio de todas as partes — como audiências judiciais ou procedimentos arbitrais.
Outro ponto crítico está na segurança dos dados armazenados, já que a transcrição e os áudios ficam hospedados nos servidores da empresa. Para conversas sensíveis ou confidenciais, a recomendação é cautela redobrada — ou uso de versões empresariais com maior controle sobre criptografia e governança.
O Fireflies.ia entrega o que promete: é uma ferramenta eficiente para gravar, transcrever e transformar reuniões em registros estruturados. Seu uso pode aumentar a produtividade e profissionalizar a gestão interna de escritórios e departamentos jurídicos. Mas, como toda ferramenta de inteligência artificial, não substitui o olhar jurídico treinado nem os deveres éticos de confidencialidade e consentimento. Saber onde ele agrega — e onde não deve entrar — é o que separa o uso estratégico da exposição desnecessária.
Você não é o único que merece uma newsletter jurídica que faz sentido. Por isso, compartilhe a Jus Civile com colegas que pensam o Direito com profundidade. Nos vemos na próxima semana! 🦉📚
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