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Jus Civile #57

A leitura jurídica não termina na letra da lei — ela começa por ali. Nesta edição, seguimos lendo também o que está por trás dos artigos. 🦉
Institutos
Estabilização da tutela antecipada
A tutela antecipada antecedente, prevista no Art. 304 do CPC, permite que uma decisão liminar produza efeitos duradouros sem necessidade de sentença de mérito, desde que não haja impugnação pela parte adversa. Trata-se de mecanismo que já se consolidou na prática forense, embora ainda gere incertezas quanto à sua natureza jurídica e aos seus efeitos concretos.
A lógica da estabilização é clara: o autor propõe uma ação de tutela antecipada antecedente, com demonstração da urgência e da probabilidade do direito. Se o juiz concede a medida e o réu não interpõe recurso (como agravo de instrumento), nem provoca o contraditório de forma adequada, a tutela se estabiliza — ou seja, permanece eficaz independentemente de sentença posterior. A demanda principal, nesses casos, sequer precisa ser ajuizada.
O instituto funciona como solução pragmática para conflitos em que não há efetiva resistência da parte contrária. A ausência de reação do réu é interpretada como concordância tácita com os efeitos da medida, o que dispensa o prosseguimento do processo.
Alguns pontos relevantes já se encontram consolidados na jurisprudência:
A estabilização não acarreta coisa julgada material, mas assegura eficácia duradoura e executável da decisão;
A reversão da medida é possível mediante ação autônoma ajuizada pelo réu no prazo de dois anos (Art. 304, §5º);
O dever de provocar o contraditório é do réu, que pode fazê-lo por recurso ou pela provocação formal da fase cognitiva completa.
Embora o instituto seja alvo de divergências doutrinárias quanto aos seus limites e natureza, ele tem se mostrado um instrumento valioso na busca por celeridade e efetividade. Ao advogado, cabe compreender com clareza suas hipóteses de cabimento, os riscos envolvidos e as estratégias possíveis — tanto para consolidar a medida quanto para revertê-la dentro do prazo legal.
Latim jurídico
Turpis causa
A expressão turpis causa refere-se à causa torpe ou imoral que contamina o objeto ou a motivação de um negócio jurídico, tornando-o inválido ou ineficaz. No Direito Civil, a causa — entendida como o motivo jurídico que justifica a existência da obrigação — deve ser lícita; quando fundada em um fim contrário à moral ou à ordem pública, o negócio pode ser declarado nulo, ainda que revestido das formalidades legais.
O Código Civil, ao tratar da nulidade dos negócios jurídicos, acolhe o princípio subjacente à turpis causa, afastando os efeitos jurídicos de atos praticados com fundamento em objetivos ilícitos ou reprováveis. Também se conecta à vedação ao enriquecimento sem causa e à irrepetibilidade de prestações realizadas com ciência da ilicitude, especialmente em contextos como jogos ilícitos, pactos de corrupção e contratos simulados para fins espúrios.
📌 Exemplo prático: João empresta R$ 100 mil a Pedro, com a condição não formalizada de que o valor seja utilizado para subornar um fiscal e viabilizar a liberação indevida de um empreendimento. Posteriormente, Pedro se recusa a devolver o valor. João ajuíza ação de cobrança. Contudo, diante da demonstração de que o empréstimo teve como turpis causa a prática de um ato ilícito, o pedido é julgado improcedente. O Judiciário não chancela negócios fundados em imoralidade ou ilicitude, ainda que formalmente válidos.
Atualidades
TJSP admite exclusão de sobrenome paterno do registro civil em razão de abandono afetivo

Imagem: criação Jus Civile
Em decisão proferida pela 2ª Câmara de Direito Privado do TJSP, no julgamento da Apelação Cível nº 1000199-64.2021.8.26.0100, foi reconhecido o direito de uma mulher à retirada do sobrenome paterno de seu registro civil com fundamento no abandono afetivo e material. A sentença de primeiro grau havia indeferido o pedido, por entender que não havia vício na filiação, mas foi parcialmente reformada em sede recursal para admitir a exclusão do patronímico.
A autora pretendia, inicialmente, a desconstituição da paternidade biológica cumulada com retificação de nome, argumentando que o genitor fora ausente por toda a sua vida, nunca exercendo qualquer papel afetivo ou material em sua formação. Embora o pedido de desconstituição da filiação tenha sido rejeitado — por inexistência de erro ou falsidade no assento —, o TJSP reconheceu que, nos casos em que o sobrenome gera sofrimento e constrangimento psicológico, é possível a supressão do patronímico, à luz da jurisprudência do STJ.
O acórdão, de relatoria do Desembargador Luiz Beethoven Giffoni Ferreira, seguiu a linha inaugurada pelo STJ, que vem admitindo a possibilidade de exclusão do sobrenome do genitor em situações excepcionais, como forma de proteger a dignidade e a identidade pessoal da parte, especialmente quando demonstrado que a permanência do nome acarreta sofrimento.
A decisão reforça que, embora a filiação biológica não possa ser desconstituída fora das hipóteses legais (Art. 1.604 do Código Civil), o nome civil é expressão da personalidade e, como tal, deve refletir a realidade emocional e social do indivíduo. A manutenção forçada de um sobrenome que remete a abandono e dor viola os princípios da afetividade, da dignidade e da liberdade existencial.
O julgamento não constitui um precedente isolado: diversas decisões recentes têm adotado raciocínio semelhante, permitindo que filhos excluam sobrenomes de genitores ausentes — desde que comprovado o dano emocional e a ruptura completa do vínculo afetivo.
Contudo, o TJSP também deixou claro que a desconstituição da filiação registral exige vício de consentimento, erro ou falsidade, não podendo ser utilizada como resposta emocional à ausência de convivência. Assim, a distinção entre estado de filiação e identidade nominal é essencial: a primeira é estável e protegida pela presunção legal; a segunda pode ser flexibilizada para proteger direitos da personalidade.
‼️ Análise crítica da decisão: o julgado do TJSP reflete uma interpretação evolutiva e humanizada do Direito Civil, que considera os afetos e ausências como componentes jurídicos relevantes, especialmente no campo do nome e da identidade. Ao reconhecer que a permanência do sobrenome paterno causava sofrimento, o Tribunal reafirma o princípio da dignidade da pessoa humana como vetor interpretativo do direito ao nome.
No entanto, o precedente também acende o alerta para a necessária ponderação entre afetividade e segurança jurídica, sobretudo para evitar o esvaziamento do instituto da filiação por vias simbólicas ou subjetivas. O Judiciário deve seguir exigindo prova robusta do abandono e do impacto psicológico causado, a fim de preservar a coerência do sistema e evitar decisões fundadas apenas em mágoas ou dissabores.
InovAção
CNIB na execução: uma ferramenta estratégica para rastrear e preservar patrimônio
A Central Nacional de Indisponibilidade de Bens (CNIB) é uma ferramenta jurídica-tecnológica criada pelo Provimento nº 39/2014 da Corregedoria Nacional de Justiça, com o objetivo de centralizar e dar efetividade às ordens de indisponibilidade patrimonial expedidas por magistrados e autoridades administrativas em todo o país.
Embora pouco explorada por muitos profissionais da prática forense, a CNIB tem enorme utilidade para advogados que atuam em ações de execução, tanto no polo ativo quanto na defesa do executado.
Para advogados do credor, a CNIB permite dar eficácia imediata a decisões que decretam a indisponibilidade de bens — com comunicação automática aos cartórios de registro de imóveis e tabeliães de notas de todo o país. O principal ganho está na prevenção de fraudes patrimoniais e na blindagem da execução contra alienações ou onerações fraudulentas.
Em termos práticos durante o patrocínio do credor, a CNIB:
Permite rastrear imóveis registrados em nome do devedor, em qualquer lugar do Brasil;
Garante que terceiros adquirentes não possam invocar boa-fé, caso comprem bem já atingido por indisponibilidade;
Atua como medida complementar a outras ferramentas patrimoniais (como Infojud, Renajud ou Sisbajud), ampliando a efetividade da tutela executiva.
No entanto, a CNIB não realiza buscas por iniciativa própria: o advogado deve fundamentar e pedir expressamente a remessa da ordem ao sistema — que, por sua vez, apenas executa a restrição com base nos dados informados.
Na defesa, conhecer a dinâmica da CNIB é essencial para reagir a indisponibilidades excessivas ou desproporcionais. Como o sistema não impõe filtro de valor ou critérios de razoabilidade, é comum que todo o patrimônio do executado seja bloqueado, mesmo diante de créditos de valor inferior.
A atuação estratégica na defesa do executado pode envolver:
Pedido de substituição da indisponibilidade por bem específico ou garantia real;
Impugnação com base no Art. 805 do CPC, para preservação da menor onerosidade;
Solicitação de revogação parcial, caso comprovada a suficiência de outros meios executivos.
Apesar do seu potencial, a CNIB não alcança bens não registrados, como quotas societárias, veículos fora dos registros atualizados ou valores bancários. Também depende da atualização e integração dos cartórios locais, o que pode variar regionalmente.
Por isso, seu uso deve ser complementar, articulado com medidas típicas de investigação patrimonial e com atuação proativa do advogado na solicitação e acompanhamento da ordem judicial.
A CNIB é, hoje, uma das ferramentas mais eficazes para preservação do patrimônio em execuções e para a concretização de ordens judiciais que antes se perdiam na fragmentação dos sistemas. Conhecer seu funcionamento e aplicabilidade prática é, para o advogado, um diferencial estratégico com impacto direto no resultado do processo.
Obrigado por estar conosco em mais uma edição. Se algo aqui te provocou, esclareceu ou inspirou, compartilhe a newsletter com outras pessoas que possam se interessam. Conhecimento que vale a pena não deve ficar parado. 🦉📚
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