Jus Civile #53

Há semanas em que tudo parece urgente — mas poucas coisas são realmente importantes. A Jus Civile desta semana entrega o essencial, sem pressa e sem ruído. Boa leitura! 🦉

Institutos

Atos emulativos

O ordenamento jurídico confere ao titular de um direito o poder de exercê-lo, mas não o autoriza a fazê-lo de forma arbitrária, maliciosa ou com a exclusiva intenção de causar prejuízo a outrem. Quando isso ocorre, o exercício do direito perde sua legitimidade e transforma-se em ilícito. É exatamente o que caracteriza o ato emulativo: uma conduta formalmente amparada por direito subjetivo, mas viciada em sua finalidade, por visar apenas ao dano alheio.

A disciplina específica dos atos emulativos está no Art. 1.228, §2º do Código Civil, segundo o qual “são defesos os atos que não trazem ao proprietário qualquer comodidade, ou utilidade, e sejam animados pela intenção de prejudicar outrem”. Embora localizado no capítulo dos direitos reais, o conceito se projeta para além do direito de propriedade, sendo aplicável a qualquer exercício de direito que se desvie de sua função legítima.

A caracterização do ato emulativo exige três elementos fundamentais:

  • Existência de um direito subjetivo exercido formalmente;

  • Inutilidade prática ou ausência de proveito para o titular;

  • Intenção maliciosa de prejudicar, incomodar ou causar dano a terceiro.

A aplicação mais recorrente ocorre no direito de vizinhança, com atos como erguer muros ou barreiras que obstruem iluminação, ventilação ou acesso, sem qualquer ganho prático ao proprietário. Mas os atos emulativos também podem ocorrer no campo obrigacional (execução abusiva de cláusulas contratuais), processual (uso de prerrogativas para atrasar ou onerar o processo), e até em relações de consumo e familiares, quando direitos são exercidos de modo a ferir, mais do que proteger.

O ordenamento jurídico não protege o abuso de direito — e o ato emulativo, como forma qualificada desse abuso, enseja sanções civis como a demolição, reparação de danos e inibição da conduta. A jurisprudência tem reconhecido atos emulativos em casos como a construção de obstáculos sem função, ou a proibição de uso de passagem ou área comum, com fins meramente vexatórios.

O advogado deve estar atento ao risco de atos emulativos tanto na defesa dos interesses de seus clientes quanto no aconselhamento preventivo, evitando condutas que possam ser judicialmente invalidadas ou gerar responsabilidade civil. Afinal, o direito não é escudo para o dolo, e onde há apenas má-fé, o sistema jurídico impõe limites, ainda que a forma aparente seja legítima.

Latim jurídico

Ubi actio, ibi jus

A máxima ubi actio, ibi jus significa “onde há ação, há direito” e é utilizada para destacar que a existência de uma ação judicial pressupõe a existência de um direito subjetivo ou uma pretensão legitimamente exercida. Essa lógica opera como um filtro para o exercício da jurisdição, buscando evitar o uso abusivo do Judiciário para tutelar interesses infundados ou inexistentes.

Ao propor uma ação, a parte deve demonstrar não apenas a lesão ou ameaça a um direito, mas a existência de um direito ou interesse jurídico concretamente protegido. Do contrário, a demanda poderá ser extinta sem resolução de mérito, por falta de interesse processual ou mesmo como litigância de má-fé, em casos de evidente abuso.

Essa máxima complementa a tradicional ubi jus, ibi actio (“onde há direito, há ação”), enfatizando a via de mão dupla entre direito material e direito processual.

📌 Exemplo prático: Pedro ajuíza ação de indenização contra seu vizinho, alegando “sentir-se ofendido” com a cor da fachada da casa deste. Contudo, não há direito subjetivo a ser tutelado contra escolha estética lícita, tampouco lesão concreta. Nesse caso, o juiz pode extinguir a ação por ausência de interesse de agir. A demanda não revela um jus (direito) protegível, e por isso a actio (ação) não pode prosperar — conforme ensina a máxima ubi actio, ibi jus.

Atualidades

Foro estrangeiro em contrato de adesão pode ser nulo se dificultar acesso do consumidor ao Poder Judiciário

Imagem: criação Jus Civile

A Quarta Turma do STJ, no julgamento do REsp 2.210.341/CE, reafirmou que a cláusula de eleição de foro estrangeiro, quando inserida em contrato de adesão e capaz de criar obstáculos ao exercício do direito de ação por consumidor domiciliado no Brasil, pode ser declarada nula por abusividade. O precedente reforça a proteção do consumidor nas relações transnacionais e no comércio eletrônico.

O caso envolveu ação de exibição de documento ajuizada por consumidora brasileira contra empresa estrangeira de apostas on-line. O contrato previa que qualquer disputa deveria ser resolvida em Gibraltar. O juízo de primeiro grau e o TJCE afastaram a cláusula, reconhecendo a competência do foro do domicílio da autora, sob o fundamento de que a exigência de litigar no exterior representaria barreira injustificável ao acesso à Justiça.

Relator do recurso especial, o Ministro Antonio Carlos Ferreira lembrou que, embora o Art. 25 do CPC admita, em regra, a validade da eleição de foro estrangeiro em contratos internacionais, o § 2º remete ao Art. 63, §§ 1º a 4º, que autoriza o juiz a declarar ineficaz cláusula abusiva — inclusive de ofício.

O colegiado reafirmou que a nulidade exige a presença conjunta de três requisitos:

  1. Contrato de adesão;

  2. Hipossuficiência do aderente (técnica, econômica ou jurídica);

  3. Dificuldade real de acesso à Justiça.

No caso, todos foram reconhecidos: a cláusula foi imposta unilateralmente, a consumidora era parte vulnerável e o litígio em foro estrangeiro implicaria barreiras linguísticas, custos elevados, distância geográfica e diferenças procedimentais.

O STJ também destacou que a empresa direcionava seus serviços ao mercado brasileiro — ofertando site em português, suporte local e possibilidade de apostas em moeda nacional — o que configurou vínculo jurídico substancial com o território brasileiro, atraindo a competência da Justiça nacional nos termos do Art. 22, II, do CPC e do Art. 4º, I, do CDC.

O relator sublinhou que, no comércio eletrônico transnacional, a determinação da competência deve considerar critérios mais flexíveis, capazes de equilibrar a vulnerabilidade do consumidor e o princípio do acesso à Justiça.

O precedente oferece segurança jurídica para consumidores brasileiros que contratam serviços digitais internacionais e enfrentam cláusulas que tentam afastar a jurisdição nacional. A decisão confirma que a proteção do consumidor prevalece sobre a literalidade de cláusulas contratuais impostas unilateralmente, evitando que a hipossuficiência seja explorada como barreira ao Judiciário.

Por outro lado, a Turma manteve a ressalva de que a nulidade não é automática: é preciso demonstrar concretamente que a eleição de foro estrangeiro gera ônus excessivo e desproporcional, sob pena de fragilizar a autonomia privada nas relações comerciais legítimas.

InovAção

CriptoJud: o sistema de bloqueio de criptoativos do Judiciário

O Judiciário brasileiro acaba de dar um passo importante rumo à modernização de suas ferramentas de constrição patrimonial. Anunciado oficialmente pelo CNJ em 5 de agosto de 2025, o CriptoJud é o novo sistema eletrônico destinado ao bloqueio, custódia e, futuramente, à liquidação de criptoativos mantidos em corretoras centralizadas (exchanges).

O funcionamento do sistema se assemelha ao que já ocorre no Sisbajud: juízes, por meio de ofícios eletrônicos, enviam ordens automáticas às exchanges participantes, que devem verificar a titularidade dos ativos vinculados ao CPF ou CNPJ da parte, realizar o bloqueio imediato e encaminhar os ativos à custódia judicial. Em breve, o sistema será ampliado para permitir a conversão em moeda corrente e transferência dos valores à conta vinculada ao processo. O lançamento oficial está previsto para 30 de agosto de 2025, com adoção gradual pelas principais plataformas que operam no Brasil.

Trata-se de um avanço significativo para ações de execução, cumprimento de sentença, cautelares e recuperações judiciais, especialmente em contextos em que há indícios de movimentações financeiras em criptoativos — cenário cada vez mais frequente em execuções de alto valor e investigações envolvendo blindagem patrimonial.

A utilização da ferramenta depende de provocação: o advogado deverá requerer expressamente ao magistrado a expedição da ordem via CriptoJud, indicando, com base em indícios, que a parte adversa mantém ativos digitais em exchanges centralizadas. Embora não haja acesso direto pelos advogados, o sistema já está incorporado à malha de serviços eletrônicos do Judiciário.

Mas o CriptoJud tem um limite estrutural incontornável: ele não alcança ativos mantidos em autocustódia. Isso significa que, se o titular dos criptoativos os mantiver sob sua própria guarda, por meio de carteiras offline ou controladas por chave privada exclusiva (como Trezor, Ledger ou aplicativos como Metamask), o Judiciário não terá meios técnicos para localizá-los, bloqueá-los ou custodiá-los.

Essa distinção lança luz sobre um aspecto cada vez mais relevante da soberania patrimonial: ativos mantidos em exchanges estão sujeitos a medidas judiciais automáticas; ativos sob autocustódia, não. Assim, o CriptoJud também acende o alerta — especialmente para operadores do Direito atentos à gestão patrimonial de seus clientes — sobre a importância de compreender o funcionamento e as implicações práticas das tecnologias descentralizadas.

Em síntese, o CriptoJud representa um avanço real na efetividade de ordens judiciais contra criptoativos, com impacto direto na advocacia contenciosa. Mas também reforça uma verdade estrutural do universo cripto: quem controla a chave, controla o ativo.

Mantemos o nosso compromisso de toda quarta-feira entregar conteúdo jurídico relevante para nossos leitores. Se você sente que vale a pena ler, ajude a espalhar. Compartilhe a Jus Civile, e até a próxima semana! 🦉📚

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