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Jus Civile #52

Nem toda norma se aplica; nem todo direito se realiza. No meio do caminho, há interpretação, contexto e escolha. Pegue seu café e siga conosco em mais uma edição da Jus Civile! ☕🦉
Institutos
Inventário negativo
O falecimento de uma pessoa abre automaticamente a sucessão, tornando-se necessário, em regra, o processamento do inventário para a apuração, partilha e transferência do patrimônio deixado aos herdeiros. Contudo, nem todo falecido deixa bens, e há situações em que a própria ausência de bens precisa ser formalmente reconhecida. É nesse contexto que se insere o inventário negativo, procedimento voltado à declaração judicial da inexistência de bens a inventariar.
Trata-se de medida de natureza eminentemente declaratória, cujo objetivo é comprovar, perante terceiros, que o falecido não deixou herança. O CPC não trata expressamente do inventário negativo, mas a doutrina e a jurisprudência admitem seu processamento com fundamento analógico nos Arts. 610 e seguintes do CPC, que regulam o inventário em geral. O inventário negativo visa a proteger os herdeiros e o espólio contra cobranças indevidas e a viabilizar formalmente a extinção de obrigações e registros.
Dentre as situações práticas que justificam a lavratura de inventário negativo, destacam-se:
Necessidade de liberação de bens gravados em nome do falecido, como veículos, imóveis ou contas bancárias sem saldo, para fins de baixa ou regularização;
Comprovação da ausência de herança em ações de execução fiscal, trabalhista ou civil, a fim de afastar a responsabilidade patrimonial dos sucessores;
Exigência de prova formal da inexistência de bens para efeitos de encerramento de firma individual ou dissolução societária.
O inventário negativo pode ser judicial ou extrajudicial. No âmbito extrajudicial, é possível sua lavratura por escritura pública, desde que presentes os requisitos exigidos pela Lei 11.441/2007: consenso entre os herdeiros, ausência de testamento e assistência por advogado. Judicialmente, o procedimento segue os trâmites do inventário comum, encerrando-se com sentença que declara a inexistência de bens a partilhar.
Importante destacar que o inventário negativo não afasta a responsabilidade dos herdeiros pelos débitos do falecido até o limite das forças da herança (Art. 1.997 do CC). Caso se verifique, posteriormente, a existência de bens não declarados, é possível a reabertura do inventário para apuração do acervo.
Embora não seja um procedimento corriqueiro, o inventário negativo é ferramenta de grande utilidade para evitar litígios, impedir a cobrança indevida de dívidas e regularizar situações jurídicas pendentes após a morte. Ao advogado, cabe identificar quando sua propositura é vantajosa, tanto para resguardar os herdeiros quanto para conferir clareza e ordem ao encerramento da sucessão. Afinal, até a ausência de herança precisa, por vezes, ser formalmente declarada.
Latim jurídico
Per relationem
A expressão per relationem significa “por referência” ou “por remissão” e é utilizada para indicar que determinado conteúdo, fundamento ou argumento não está explicitado diretamente no texto, mas sim incorporado por meio de remissão a outro documento, ato ou decisão. Seu uso é comum tanto no campo contratual quanto na fundamentação judicial.
No processo civil, a motivação per relationem ocorre quando o juiz, ao proferir sua decisão, remete-se aos fundamentos apresentados por uma das partes ou por outra decisão anterior, sem reproduzi-los integralmente. Essa técnica é válida, desde que os fundamentos referidos estejam acessíveis às partes e ao órgão revisor, permitindo o exercício do contraditório e o controle jurisdicional (conforme o Art. 489, §1º, IV do CPC).
📌 Exemplo prático: em uma sentença, o juiz afirma: “Adoto os fundamentos constantes na manifestação ministerial de fls. 115/118, per relationem, para julgar improcedente o pedido”. Nesse caso, a fundamentação da sentença está incorporada por referência à manifestação do Ministério Público. A decisão não é nula, desde que a peça referida esteja nos autos e contenha os fundamentos jurídicos suficientes para justificar o julgamento — assegurando, assim, o contraditório e a motivação adequada.
Atualidades
STJ decide que imóvel doado em programa habitacional integra patrimônio comum, mesmo se registrado em nome de um só cônjuge

Imagem: criação Jus Civile
No julgamento do REsp 2.204.798/TO, a Terceira Turma do STJ firmou relevante precedente no campo do Direito das Famílias:: imóvel doado pelo poder público no contexto de programa habitacional deve ser partilhado entre os cônjuges, ainda que registrado exclusivamente em nome de um deles e mesmo que o regime de bens seja o da comunhão parcial.
O caso analisado envolveu casal casado em 1982, que recebeu imóvel em 1999, no âmbito de programa estadual de regularização fundiária. A doação foi formalizada apenas em nome do marido. Após a separação de fato e ajuizamento do divórcio, a esposa pleiteou a partilha do imóvel, o que foi negado nas instâncias ordinárias, sob o fundamento de que, por se tratar de doação gratuita (Art. 1.659, I, do CC), o bem seria incomunicável.
A Ministra Nancy Andrighi, relatora, afastou a aplicação automática do Art. 1.659, I, do Código Civil, sustentando que a natureza da doação deve ser analisada sob a perspectiva da função social e da destinação do bem. No contexto dos programas habitacionais assistenciais, a doação não se destina a uma pessoa isolada, mas sim à entidade familiar, com base em critérios como renda do núcleo familiar e número de dependentes.
O STJ enfatizou que a concessão do imóvel, embora formalizada em nome de um dos cônjuges, só ocorreu em razão da composição e da renda da família, o que revela esforço comum subjacente e destinação coletiva do bem. Assim, a doação possui caráter familiar (intuitu familiae), e não exclusivamente pessoal (intuitu personae).
Ao reconhecer que a aquisição do bem decorreu da concretização de política pública voltada à moradia familiar, o STJ firmou que esse tipo de doação não se submete à regra geral da incomunicabilidade, passando a integrar a comunhão de bens do casal. Com isso, o imóvel deve ser igualmente partilhado por ocasião do divórcio, mesmo sem contribuição financeira direta do cônjuge excluído do título de propriedade.
A decisão reafirma que o registro público não é absoluto, e que o direito material deve prevalecer sobre a mera formalidade cartorária, especialmente quando envolvido o direito social à moradia.
A decisão da Terceira Turma representa um marco na adequação do regime de bens às políticas públicas de habitação, promovendo maior isonomia patrimonial entre os cônjuges e valorizando a realidade social e afetiva da família. Ao adotar uma leitura finalística do Art. 1.659, I, do CC, o STJ previne injustiças que poderiam advir da aplicação literal da incomunicabilidade.
Entretanto, o precedente também exige cautela hermenêutica, pois nem toda doação estatal é comunicável. A chave interpretativa está na análise concreta da destinação do bem e dos critérios de concessão. Essa ponderação é essencial para que a excepcionalidade reconhecida pelo STJ não seja banalizada em prejuízo da segurança jurídica.
Ainda assim, o acórdão prestigia o direito material sobre o formalismo registral, reforçando a noção de que o patrimônio construído com base em esforços comuns — mesmo que não monetários — merece proteção jurídica equivalente, sobretudo quando envolvida a moradia familiar.
InovAção
Pesquisa jurisprudencial com IA: o Modo Agente do ChatGPT em ação
Realizar uma pesquisa jurisprudencial eficiente é uma das tarefas mais críticas (e, muitas vezes, demoradas) na rotina do advogado. Exige precisão temática, delimitação de contexto, compreensão dos tribunais relevantes e, não raro, familiaridade com múltiplas plataformas.
A chegada do Modo Agente no ChatGPT — agora disponível também para usuários do plano Plus — abre novas possibilidades nesse campo: com ele, a inteligência artificial não apenas responde a um prompt, mas atua de forma autônoma, executando tarefas em sequência e realizando buscas ativas na internet para encontrar julgados compatíveis com a questão proposta.
Na prática, o Agente assume um papel mais próximo ao de um assistente jurídico proativo, capaz de interpretar a demanda, refinar os termos da pesquisa e apresentar decisões fundamentadas, incluindo ementas e dados dos processos.
Em testes recentes realizados pela Jus Civile, o Modo Agente demonstrou ser capaz de localizar decisões judiciais reais, com número de processo válido e ementa correspondente, mesmo enfrentando barreiras de acesso nos sites oficiais dos tribunais. Isso ocorre porque o Agente, ao ser impedido por bloqueadores de sites públicos, recorre a repositórios alternativos — como notícias jurídicas, sites de advocacia e bases indexadas com conteúdo aberto.
O sistema mostra transparência ao exibir na tela os passos da busca, permitindo ao usuário conferir as fontes consultadas. Essa visibilidade é essencial para garantir controle e validar os resultados.
Entretanto, o Agente ainda enfrenta limitações de acesso direto a bancos oficiais, como o site do STJ ou dos Tribunais de Justiça, que frequentemente aplicam bloqueios contra acessos automatizados. Por isso, ele não substitui uma pesquisa aprofundada em bases como Jusbrasil, DataJud ou nos próprios sites dos tribunais, mas pode ser um excelente ponto de partida, economizando tempo na triagem inicial de julgados relevantes.
Para obter resultados mais precisos, algumas dicas práticas são fundamentais:
Delimite o tema com clareza: não basta pedir “jurisprudência sobre responsabilidade civil”. Seja específico: “Responsabilidade civil por vício oculto em imóvel novo, com decisão favorável ao comprador”.
Indique o desfecho pretendido: informe à IA se você deseja precedentes favoráveis ou contrários à tese, e se há interesse em decisões com repercussão geral, súmulas ou teses repetitivas.
Especifique tribunais e cortes desejados: por exemplo, “decisões do STJ ou TJSP dos últimos 5 anos” ajuda a refinar o escopo e evita resultados de tribunais menos relevantes ao caso.
Peça o número do processo e fonte consultada: isso permite que você verifique a veracidade da decisão posteriormente e evite usar julgados inventados — um risco real em modelos de IA.
Use linguagem objetiva, mas técnica: indique palavras-chave jurídicas e evite termos genéricos.
A pesquisa jurisprudencial via Modo Agente representa um avanço prático no uso de IA no Direito. Ainda que não substitua bases tradicionais, o Agente atua com autonomia, fornece julgados reais e permite ao advogado concentrar-se na análise crítica do conteúdo, e não na busca manual.
Ao entender suas capacidades e limitações, o profissional transforma a IA em aliada estratégica, ganhando tempo, ampliando o escopo da pesquisa e aprimorando a qualidade dos fundamentos apresentados.
Finalizamos mais uma edição da Jus Civile, com o desejo de que algo aqui te acompanhe - numa petição, numa aula ou num bom debate. Se curtiu, compartilhe a newsletter. O conhecimento se fortalece quando circula. 🦉📚
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