Jus Civile #50

Hoje melhor do que ontem, amanhã melhor do que hoje. Não é sobre se transformar do dia para noite, mas sobre se comprometer com pequenas vitórias diárias. No fim das contas, o segredo não é correr — é não parar. Cinquenta edições depois, seguimos com o mesmo compromisso: conteúdo jurídico de qualidade, entregue em sua caixa de entrada toda semana. 🦉

Institutos

Comoriência

No Direito das Sucessões, saber quem morreu primeiro pode ser mais do que uma questão cronológica — pode ser determinante para definir herdeiros, direitos e partilhas. Quando duas ou mais pessoas, chamadas à sucessão uma da outra, falecem na mesma ocasião, sem que se possa comprovar a ordem exata dos óbitos, o Código Civil, em seu Art. 8°, oferece uma solução técnica: a comoriência.

Segundo esse dispositivo, não havendo prova da precedência da morte de uma em relação à outra, presume-se que ambas morreram ao mesmo tempo, impedindo que haja sucessão entre elas. Na prática, isso significa que nenhum dos comorientes herda os bens do outro — os patrimônios permanecem em seus respectivos espólios e são transmitidos diretamente a seus herdeiros próprios.

Trata-se de uma presunção legal, relativa à ordem dos óbitos, que visa conferir segurança jurídica em contextos trágicos e incertos — como acidentes fatais, catástrofes ou eventos violentos com múltiplas vítimas da mesma família. A presunção pode ser afastada, desde que haja prova inequívoca da ordem das mortes, como por meio de laudos médicos, perícias forenses ou testemunhas idôneas.

Em termos patrimoniais, os efeitos da comoriência são significativos. Imagine um casal sem filhos, mas com herdeiros colaterais distintos. Se um fosse considerado falecido antes do outro, o sobrevivente herdaria o patrimônio, que então seria transmitido a seus próprios herdeiros. Com a presunção da comoriência, essa transferência em cadeia é bloqueada: cada espólio será transmitido diretamente aos herdeiros de cada falecido, sem sucessão cruzada.

A jurisprudência brasileira já enfrentou situações delicadas em que se discutia a comoriência entre cônjuges, irmãos, pais e filhos. Em geral, os tribunais aplicam a presunção legal de forma restritiva, exigindo robusta demonstração da anterioridade do óbito para afastá-la. O STJ também tem reafirmado que a regra do Art. 8º deve ser aplicada com cautela, mas firmeza, a fim de evitar manipulações indevidas do direito sucessório.

O advogado que atua em inventários e planejamento sucessório deve estar atento à comoriência não apenas como uma curiosidade jurídica, mas como elemento central na estruturação de estratégias hereditárias. Sua compreensão adequada evita litígios entre colaterais, orienta cláusulas testamentárias e confere segurança técnica a quem busca organizar a sucessão de forma legítima e eficaz.

Latim jurídico

Intuito familiae

A expressão intuito familiae indica que determinado ato jurídico foi celebrado com base em laços familiares ou em função da constituição, preservação ou proteção de uma entidade familiar. Trata-se de uma categoria especial de negócios jurídicos marcada pela confiança, pela afetividade e pela finalidade personalíssima — o que pode influenciar tanto sua interpretação quanto sua validade.

Negócios intuito familiae não são meras manifestações de vontade patrimonial: neles, o vínculo familiar é o elemento determinante da relação jurídica. Por isso, possuem maior sensibilidade a alterações subjetivas, como a dissolução da união ou a ruptura da convivência, podendo, em certas hipóteses, ser extintos ou revistos judicialmente por perda da base afetiva ou quebra de confiança.

📌Exemplo prático: um pai transfere um imóvel ao filho por doação, com a condição tácita de que ele ali resida e cuide dos pais idosos. Anos depois, o filho rompe relações com a família e aluga o imóvel a terceiros. Diante dessa mudança, o pai ajuíza ação para revogar a doação, com base na ingratidão e na quebra do intuito familiae que justificou o ato. A jurisprudência reconhece que, quando a liberalidade se funda claramente em vínculos afetivos e obrigações morais, o rompimento desses laços pode justificar sua revisão ou desfazimento.

Atualidades

STJ garante comissão integral a corretora que promoveu aproximação entre as partes, mesmo sem intermediar o negócio final

Imagem: Freepik

A Terceira Turma do STJ decidiu que a comissão de corretagem é devida sobre o valor total da área negociada, ainda que o corretor não tenha participado da fase final do contrato, desde que sua atuação inicial tenha sido determinante para a concretização do negócio. A decisão foi proferida no julgamento do REsp 2.165.921/SP, de relatoria do Ministro Moura Ribeiro.

No caso, a empresa Muratore Empreendimentos & Participações Ltda. ingressou com ação de cobrança alegando ter promovido a aproximação entre a vendedora (Itaquera Desenvolvimento Imobiliário e LPU Lindencorp) e a compradora (MRV Engenharia), oferecendo parte de um terreno urbano. Posteriormente, as partes concretizaram o negócio de forma direta, com intermediação de outra empresa e em área quatro vezes maior — sem o pagamento de comissão à Muratore.

O TJSP reconheceu o direito à comissão, mas limitou a base de cálculo à área inicialmente apresentada. No entanto, o STJ reformou parcialmente a decisão, reconhecendo que a atuação da Muratore resultou em aproximação útil e eficaz, motivo pelo qual a comissão deve incidir sobre o valor total do imóvel vendido, correspondente a 57.119,26 m².

Ao reformar o acórdão do TJSP, o STJ enfatizou que o contrato de corretagem é regido pelos princípios da onerosidade e bilateralidade, sendo devida a remuneração quando o corretor consegue promover a aproximação entre as partes que, ao final, celebram o contrato — independentemente de alterações na área ou de sua exclusão na fase final.

Nos termos do Art. 725 do Código Civil, o corretor faz jus à remuneração se o negócio se realizar em virtude de sua atuação. O relator destacou que a área inicialmente ofertada estava incluída na matrícula da área total adquirida, e que a atuação da empresa corretora foi decisiva para o êxito da negociação, ainda que finalizada posteriormente por terceiros.

O STJ também aplicou o Art. 728 do Código Civil, reconhecendo que, havendo mais de um corretor, a remuneração deve ser partilhada de forma igualitária, assegurando à Muratore 50% da comissão contratada (6%).

O acórdão traz importante reforço à segurança jurídica nas relações entre corretores e clientes. Frequentemente, corretores são excluídos da reta final de negociações, mesmo após investirem tempo, recursos e esforço para gerar a aproximação inicial. Com base nesse julgado, reforça-se a tese de que a remuneração é devida quando a atuação do corretor for determinante para o resultado útil — ainda que ele não figure na assinatura do contrato final.

A decisão também afasta práticas que buscam esquivar-se do pagamento da comissão por meio de modificações marginais no objeto da transação ou substituição estratégica de intermediários.

Para o mercado, o precedente representa um marco na valorização do trabalho do corretor de imóveis e impõe limites à má-fé contratual, promovendo equilíbrio e previsibilidade nas operações imobiliárias.

InovAção

Agent Mode no ChatGPT: o que muda para o advogado com a chegada do assistente autônomo

A OpenAI está liberando, de forma escalonada, o aguardado Agent Mode (ou “modo agente”) do ChatGPT para usuários do plano Plus, com início da implantação em 17 de julho de 2025. O recurso, que já estava em testes internos e foi antecipado para usuários dos planos Pro e Team, permite criar agentes autônomos personalizados, capazes de conduzir fluxos complexos com base em objetivos definidos, memória ativa e múltiplas etapas encadeadas.

Mas, afinal, o que isso significa na prática para o profissional do Direito? Ao contrário dos GPTs personalizados lançados em 2023 — que funcionam como “modelos ajustados” com instruções fixas — o Agent Mode traz um salto qualitativo: o agente não apenas responde a comandos, mas atua como executor de tarefas, de forma mais dinâmica, com capacidade de tomar decisões intermediárias, realizar perguntas de esclarecimento, acessar ferramentas conectadas (como navegadores ou bancos de dados) e ajustar sua estratégia conforme a interação avança.

No ambiente jurídico, isso abre portas para usos inéditos. Imagine um agente que:

  • Conduz o levantamento inicial de informações para redigir uma petição inicial;

  • Acompanha prazos em um sistema integrado de agenda e envia alertas preventivos;

  • Monitora jurisprudência em tempo real, sugerindo atualizações em peças salvas;

  • Interage com clientes de forma automatizada, colhendo dados para elaborar contratos;

  • Realiza varreduras periódicas em sites de tribunais, detectando novos andamentos.

Tudo isso sem a necessidade de digitar um prompt novo a cada etapa — o agente pode ser treinado para agir conforme o contexto, com base em instruções persistentes e comportamento adaptável.

É evidente o potencial transformador da ferramenta, sobretudo para atividades repetitivas e operacionais da advocacia. No entanto, é importante temperar o entusiasmo com uma análise realista das limitações atuais:

  • O Agent Mode ainda não interage diretamente com sistemas externos jurídicos brasileiros, como PJe, e-SAJ ou DataJud, a menos que integrado por meio de APIs externas específicas (ainda em estágio embrionário para a maioria dos tribunais).

  • A memória ativa ainda requer cuidado: informações sensíveis devem ser tratadas com cautela, e a supervisão humana é indispensável para evitar desvios interpretativos.

  • Não há, até o momento, agentes pré-configurados com foco exclusivamente jurídico — o que exige do usuário habilidade em engenharia de prompt e curadoria de instruções.

O Agent Mode representa um avanço promissor para o uso da inteligência artificial no Direito, oferecendo um modelo de atuação mais proativa e menos reativa. Ele não apenas responde — ele acompanha, interage, adapta-se. Na prática, pode tornar-se uma espécie de “paralegal digital”, automatizando tarefas intermediárias e liberando o advogado para aquilo que mais importa: estratégia, análise crítica e atuação humana.

A tecnologia ainda está em evolução, mas a direção é clara: o advogado do futuro será também gestor de agentes inteligentes. E esse futuro já começou.

Chegamos ao fim da edição nº 50 da Jus Civile — e você é parte essencial dessa trajetória! Se este conteúdo fez sentido, compartilhe com quem também valoriza informação jurídica de qualidade. Até a próxima! 🦉📚

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