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Jus Civile #46

Bem-vindo(a) à Jus Civile! O tempo nem sempre explica — mas quase sempre revela. Decisões, intenções, vínculos: tudo se mostra com o tempo certo. A edição de hoje é um convite para olhar com atenção ao que parece óbvio. Às vezes, são os detalhes o que mais importam no Direito.
Institutos
Desconsideração inversa da personalidade jurídica
A desconsideração da personalidade jurídica é tradicionalmente compreendida como um mecanismo excepcional de superação da separação entre as esferas patrimoniais da pessoa jurídica e de seus sócios. No entanto, a prática forense revelou situações em que essa separação é indevidamente manipulada no sentido oposto: utiliza-se a empresa como “refúgio” para esconder bens do sócio em prejuízo de credores. É neste contexto que emerge a desconsideração inversa da personalidade jurídica.
A desconsideração inversa, embora não expressamente regulada no ordenamento jurídico até o advento do atual CPC, já vinha sendo reconhecida pela jurisprudência e por parte significativa da doutrina. Seu fundamento reside na teoria do abuso da personalidade jurídica (Art. 50 do Código Civil), aplicada de forma a atingir os bens da pessoa jurídica, e não apenas os do sócio, como ocorre na forma tradicional.
Na desconsideração inversa, o juiz desconsidera a personalidade da empresa para responsabilizá-la por obrigações pessoais de um de seus sócios, em casos nos quais se verifica o desvio de finalidade ou a confusão patrimonial. Em geral, trata-se de situações nas quais o sócio transfere bens do seu patrimônio pessoal para o da pessoa jurídica com o intuito de fraudar credores, burlar obrigações civis, trabalhistas ou fiscais, ou mesmo ocultar patrimônio em partilhas e execuções.
Diferente da desconsideração clássica, que visa atingir o patrimônio pessoal do sócio para satisfazer obrigações da empresa, a modalidade inversa é voltada à responsabilização da pessoa jurídica por dívidas de seu sócio. Essa operação só se legitima diante de provas claras de que o sócio se valeu da empresa como instrumento para ocultação patrimonial ou para desvirtuar a finalidade empresarial.
O procedimento para a instauração da desconsideração — tradicional ou inversa — é hoje regulado pelo Arts. 133 a 137 do CPC/2015, que garante o contraditório e ampla defesa da parte atingida. Deve-se peticionar requerendo a desconsideração, demonstrando os elementos que configuram os requisitos do Art. 50 do CC. O juiz poderá, então, instaurar o incidente próprio, em que a empresa será citada para apresentar defesa antes que eventual constrição patrimonial seja determinada.
❗ No cenário jurídico contemporâneo, a aplicação desse instituto tende a se expandir, especialmente frente à crescente complexidade das estruturas empresariais e à sofisticação dos mecanismos de blindagem patrimonial. O operador do Direito, atento ao tema, deve conhecer seus limites, fundamentos e técnica processual adequada para invocá-la — ou resistir a ela — com segurança.
Latim jurídico
Animus domini
Entre os elementos que compõem a posse no Direito Civil, destaca-se o animus domini — expressão latina que denota a intenção de agir como proprietário de um bem. Não basta exercer o poder físico sobre a coisa (corpus); é necessário demonstrar que essa atuação se dá com o propósito de dono, o que distingue o possuidor do mero detentor.
Essa distinção é crucial, por exemplo, nos casos de usucapião. Aquele que possui um imóvel ou bem móvel, ainda que sem o título formal de propriedade, pode adquiri-lo se preencher os requisitos legais, sendo o animus domini um dos principais. O detentor, por outro lado, reconhece o domínio alheio e atua subordinadamente — como o inquilino, o comodatário ou o caseiro.
📖 Exemplo prático: imagine que Carla herdou uma casa, mas nunca formalizou a partilha. Seu irmão, Lucas, passou a residir no imóvel, reformou-o, pagou IPTU por mais de 15 anos e nunca permitiu interferência de terceiros. Ainda que o bem estivesse registrado em nome da falecida mãe, Lucas exerceu a posse com animus domini. Nessas circunstâncias, é possível pleitear a usucapião, demonstrando que ele não agia como simples cuidador ou comodatário, mas como verdadeiro proprietário.
Atualidades
STJ afasta cobrança de aluguel por ex-cônjuge quando o imóvel é também moradia de filhos do casal

Imagem: criação Jus Civile
No REsp 2.082.584/SP, a Terceira Turma do STJ enfrentou tema de elevada relevância no Direito das Famílias: a possibilidade de arbitramento de aluguéis entre ex-cônjuges pelo uso exclusivo de imóvel comum ainda não partilhado — quando esse mesmo imóvel também serve de moradia aos filhos do casal.
O caso teve origem em ação de arbitramento de aluguéis ajuizada por um ex-marido, alegando que a ex-esposa usufruía com exclusividade de imóvel comum, após o divórcio, sem qualquer contraprestação. O TJSP acolheu parcialmente o pedido, fixando um valor mensal a título de indenização, mesmo diante do fato de que a filha menor do casal residia no imóvel com a mãe. A controvérsia chegou ao STJ por meio de recurso especial interposto pela mãe.
A Ministra Nancy Andrighi, relatora do caso, reconheceu a distinção essencial entre a posse exclusiva e a posse compartilhada do bem, afastando a aplicação automática da jurisprudência sobre indenização entre ex-cônjuges. Para a Terceira Turma, quando o imóvel é ocupado também por filho comum do casal — especialmente se menor de idade e sob a guarda do ex-cônjuge que nele reside — não há posse exclusiva capaz de justificar o arbitramento de aluguéis.
O Tribunal destacou que o dever de garantir moradia à prole é compartilhado por ambos os pais e que essa obrigação pode ser cumprida por meio de prestação in natura, como a disponibilização do imóvel. Assim, eventuais valores que seriam devidos como “indenização” pelo uso exclusivo do bem devem ser interpretados sob a ótica do dever alimentar, com atenção à proibição de enriquecimento ilícito.
O julgamento marca um refinamento da jurisprudência sobre o uso de imóvel comum após a dissolução da sociedade conjugal, delimitando hipóteses em que a indenização é cabível e afastando sua aplicação automática em situações que envolvam o dever parental de moradia.
A decisão também reforça a importância de se considerar o melhor interesse da criança, mesmo em disputas de cunho patrimonial. Ao reconhecer que a presença da filha no imóvel descaracteriza o uso exclusivo e serve como modalidade legítima de cumprimento do dever de sustento, o STJ alinha-se à perspectiva do Direito das Famílias como ramo orientado por princípios personalistas e protetivos.
Para advogados que atuam em ações de divórcio, partilha ou alimentos, o precedente oferece fundamento sólido para rebater pedidos de arbitramento de aluguéis quando houver filhos menores residindo com um dos genitores no imóvel comum.
InovAção
Voicetype: transcrição por voz com qualidade premium
A escrita por voz tem deixado de ser um experimento incômodo para se tornar uma alternativa real de produtividade. Nesse cenário, a ferramenta Voicetype tem ganhado espaço entre profissionais que lidam com altos volumes de texto — e os operadores do Direito estão entre eles.
Embora não seja uma solução jurídica por natureza, a Voicetype tem chamado atenção pela precisão na transcrição de voz para texto, com desempenho acima da média de ferramentas similares, e pela possibilidade de uso em qualquer editor: WhatsApp, Word, Notion, ChatGPT, e-mails e outros.
A Voicetype é um aplicativo de transcrição de voz que roda localmente em computadores da Apple (macOS). Seu diferencial está no uso de modelos de linguagem embarcados, que funcionam de forma offline, garantindo mais privacidade e velocidade na transcrição. É compatível com mais de 100 idiomas — inclusive o português brasileiro.
Com ela, o usuário pode ditar diretamente em campos de texto de qualquer programa ou navegador, bastando ativar o recurso e começar a falar. A ferramenta reconhece a fala em tempo real e insere o texto no campo selecionado, respeitando a pontuação e com baixo índice de erro.
Advogados que trabalham com grande volume de peças, contratos ou pareceres podem se beneficiar da agilidade oferecida pela transcrição por voz. Mesmo sem comandos jurídicos integrados, o uso disciplinado da fala pode acelerar a etapa bruta da redação. Depois, o texto pode ser revisado e ajustado no editor usual.
✔️ Pontos positivos:
Alta fidelidade na transcrição: a Voicetype entrega uma das melhores taxas de precisão entre ferramentas disponíveis, mesmo em português, o que reduz significativamente o retrabalho.
Privacidade garantida: todo o processamento ocorre de forma local, sem envio de dados para servidores externos — ponto crucial para ambientes que lidam com dados sensíveis, como o jurídico.
Uso offline: ideal para profissionais que trabalham em ambientes com conexão limitada ou que buscam segurança adicional ao não depender de nuvem.
❌ Pontos negativos:
Disponível apenas para macOS: a principal limitação da Voicetype é que ela só funciona em computadores da Apple. Não há versão para iPhone, iPad, Windows ou Android.
Interface enxuta: como não é um editor completo, o trabalho de revisão e formatação do texto precisa ser feito externamente.
Custo: não há versão gratuita. O plano exige assinatura de US $13,59 por mês, após um período de teste de 3 meses. Para profissionais que ditam esporadicamente, o valor pode não compensar.
Curva de adaptação: usuários que não estão habituados a ditar textos completos precisarão se adaptar ao ritmo da ferramenta, articulando pontuação e pausas com clareza.
A Voicetype se destaca como uma ferramenta sólida de ditado — especialmente pela combinação entre privacidade, fidelidade de transcrição e liberdade de uso em diversos campos de texto. Ainda que não tenha foco jurídico, seu uso por advogados é viável, desde que aliado a uma boa revisão final. Contudo, a limitação ao ecossistema Apple e o custo relativamente alto podem restringir seu uso no Brasil, onde muitos profissionais ainda trabalham em ambiente Windows. Para quem já utiliza macOS e busca acelerar a produção textual, vale o teste.
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