Jus Civile #45

⏳ Quarta-feira, feriado à vista! Mas antes da pausa, um bom conteúdo para acompanhar o seu café. Nesta edição da Jus Civile, mergulhamos em temas atuais, revisitamos conceitos e analisamos julgados que merecem atenção — tudo na medida certa para começar o descanso com conteúdo relevante. Vamos juntos?

Institutos

Direito real de laje

O direito real de laje, positivado no Art. 1.510-A do Código Civil, é um dos mais emblemáticos exemplos de como o Direito Civil contemporâneo pode oferecer soluções normativas para desafios habitacionais urbanos recorrentes no Brasil. Trata-se de um instituto jurídico que legitima, como direito real autônomo, a edificação sobre (ou sob) uma construção preexistente — conferindo ao titular da laje a possibilidade de registrar sua unidade como bem distinto, com matrícula própria no Registro de Imóveis.

Antes da introdução legislativa promovida pela Lei nº 13.465/2017, a construção sobrepostas — notadamente em comunidades urbanas periféricas — era frequentemente tratada como benfeitoria ou acessão, sem reconhecer autonomia jurídica à nova unidade edificada. O direito real de laje veio, portanto, como instrumento de regularização fundiária e como manifestação clara do princípio da função social da propriedade.

Segundo o Código Civil, o proprietário de uma construção-base poderá ceder a superfície superior ou inferior de sua construção a fim de que o titular da laje mantenha unidade distinta daquela originalmente construída sobre o solo.

Os principais elementos característicos desse instituto são:

  • Autonomia jurídica e registral: a laje não é acessória, mas constitui uma unidade imobiliária com matrícula própria;

  • Dependência estrutural da construção-base: embora autônoma juridicamente, a edificação da laje depende fisicamente da base, o que impõe regras de convivência, responsabilidade solidária por manutenções estruturais e uso das áreas comuns;

  • Natureza limitada do domínio: trata-se de um domínio restrito ao espaço edificado, não extensível ao solo ou ao subsolo além do necessário para sua sustentação e acesso.

O maior mérito do direito real de laje está na sua capacidade de reconhecer juridicamente práticas sociais já consolidadas, como a habitação sobreposta entre membros de uma mesma família ou entre diferentes núcleos familiares em comunidades de baixa renda.

Contudo, a aplicação do instituto ainda enfrenta obstáculos relevantes:

  • Carência de normativas infralegais uniformes, especialmente no que se refere a parâmetros construtivos e urbanísticos exigidos por prefeituras e cartórios;

  • Risco de conflitos entre os titulares das unidades sobrepostas, exigindo maior clareza sobre os deveres de conservação e uso compartilhado;

  • Insegurança registral, uma vez que, embora prevista legalmente, a efetivação do registro da laje depende de um registro prévio da construção-base — o que muitas vezes não existe.

A doutrina ainda debate se se trata de um novo tipo de propriedade horizontal por superposição, distinta do condomínio edilício, ou de uma espécie de domínio funcionalmente restrito. Em ambas as hipóteses, o que se observa é uma valorização da função social e do aspecto comunitário da posse e da propriedade urbana, alinhando o direito privado à realidade concreta da moradia popular.

Latim jurídico

Res inter alios acta

A expressão res inter alios acta pode ser traduzida como “coisa feita entre outros” e consagra um princípio segundo o qual os atos e contratos firmados entre terceiros não produzem efeitos jurídicos em relação a quem deles não participou. Seu fundamento está na ideia de que o negócio jurídico gera efeitos apenas entre as partes que dele participaram.

A origem da expressão remonta ao Direito Romano, onde já se afirmava que res inter alios judicata aliis nec nocere nec prodesse potest — ou seja, uma decisão tomada entre terceiros nem prejudica, nem aproveita a quem não foi parte.

📌 Exemplo prático: Um condomínio firma contrato com a empresa X para manutenção dos elevadores. Um morador, insatisfeito com o serviço, tenta exigir melhorias com base em cláusulas de outro contrato que a empresa X possui com um prédio vizinho. Nesse caso, aplica-se o princípio res inter alios acta: o contrato firmado entre a empresa X e o prédio vizinho não produz efeitos no contrato do condomínio atual, nem pode ser usado para alterar obrigações entre as partes originais.

A expressão é especialmente útil em peças processuais quando se quer afastar tentativas de vinculação indevida a atos, contratos ou decisões nos quais o cliente não figurou como parte legítima.

Atualidades

Imagem: Freepik

A 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, no REsp 2.111.839, analisou a possibilidade de penhora do único imóvel residencial do espólio para satisfação de dívida contraída em vida pelo falecido. Por unanimidade, o colegiado decidiu que, mantidas as condições legais, o imóvel permanece protegido como bem de família, ainda que não tenha havido partilha e continue registrado em nome do de cujus.

O caso teve origem em uma ação cautelar de arresto, proposta por credores de dívida empresarial no valor de R$ 66 mil. Alegando risco de alienação do bem antes da conclusão da execução, os autores pleitearam o bloqueio do imóvel. A residência era ocupada por dois herdeiros, um deles interditado e sem qualquer fonte de renda. Ainda assim, a liminar foi concedida e, na sentença, o arresto foi mantido, sob o fundamento de que o espólio, enquanto indiviso, responde integralmente pelas obrigações do falecido.

O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul confirmou o entendimento. Para a corte estadual, enquanto não houvesse partilha, o imóvel continuava como bem pertencente ao espólio, não incidindo a proteção prevista na Lei nº 8.009/1990.

Ao julgar o recurso especial, contudo, o ministro Antonio Carlos Ferreira reformou esse entendimento. Destacou que a impenhorabilidade do bem de família possui natureza de regra de ordem pública, prevista nos Arts. 1º, 3º e 5º da Lei nº 8.009/1990, e só pode ser afastada nas hipóteses legais expressamente previstas, as quais devem ser interpretadas de forma restritiva.

Com base no Art. 1.784 do Código Civil, o relator enfatizou que, pela regra da saisine, a herança é transmitida aos herdeiros no momento da abertura da sucessão, e com ela, também se transmitem as proteções jurídicas vinculadas aos bens. Assim, se o imóvel era impenhorável em vida, continua sendo após a morte, desde que sirva de residência à entidade familiar.

A decisão também reforça o alcance do Art. 1.997 do Código Civil, que limita a responsabilidade dos herdeiros ao valor da herança recebida, sem afastar, por isso, a proteção conferida ao imóvel como bem de família. O crédito permanece exigível, mas a execução deve se dar sobre outros bens que não estejam abrangidos por restrições legais.

📌 Análise crítica: A decisão reafirma o valor da moradia como bem jurídico prioritário, mesmo na sucessão. Ao proteger o único imóvel do espólio, o STJ preserva o direito à residência dos herdeiros em situação de vulnerabilidade. No entanto, o julgado também impõe limites práticos à execução: quando não há outros bens penhoráveis, o credor fica com seu crédito reconhecido, mas sem meios eficazes de satisfação. O precedente exige atenção, sobretudo em contextos empresariais, onde a blindagem de patrimônio por meio da sucessão pode ser estratégica. O desafio permanece em encontrar o ponto de equilíbrio entre tutela da dignidade habitacional e efetividade da execução civil.

InovAção

ProofMode: ferramenta para captura de provas digitais

A crescente digitalização das relações civis tem exigido respostas igualmente digitais no campo probatório. Entre as soluções emergentes, o ProofMode — um aplicativo de código aberto desenvolvido pelo Guardian Project — vem sendo apontado como alternativa para captura de provas digitais com autenticação técnica robusta, mesmo fora de ambientes formais ou notariais.

Trata-se de uma ferramenta que permite ao usuário tirar fotos, gravar vídeos, registrar áudios ou capturar mensagens, anexando metadados relevantes para fins de verificação, como hash criptográfico, geolocalização, data, hora, ID do dispositivo e integridade de cadeia de custódia. Todos os dados ficam armazenados localmente e não são manipulados pelo app, o que fortalece o argumento de preservação da autenticidade.

O CPC permite ampla liberdade probatória, admitindo inclusive meios atípicos, desde que idôneos e pertinentes ao objeto da controvérsia. A prova digital, mesmo quando produzida unilateralmente, pode ser válida se não impugnada pela parte contrária, ou se dotada de forte verossimilhança e coerência com os demais elementos dos autos.

Embora o ProofMode não substitua a ata notarial, ele pode ser útil em situações de urgência ou quando se pretende demonstrar a cadeia de custódia da prova desde a origem. Não há, até o momento, jurisprudência consolidada sobre o uso do ProofMode em processos judiciais brasileiros, mas há decisões que reconhecem a validade de arquivos digitais com metadados, desde que acompanhados de adequada contextualização jurídica.

Apesar do apelo tecnológico, é preciso cautela ao incorporar ferramentas como o ProofMode ao processo. Destacam-se as seguintes limitações:

  • A prova continua sendo unilateral e, portanto, sujeita a impugnação. O juiz pode exigir perícia técnica para verificar a integridade dos arquivos;

  • A familiaridade com a linguagem técnica é baixa no meio forense, o que pode gerar resistência na aceitação;

  • A simples existência de metadados não confere presunção de veracidade ao conteúdo capturado — a narrativa jurídica ainda é essencial para contextualizar e vincular o material à tese defendida.

O ProofMode representa um passo relevante na busca por provas digitais mais acessíveis, especialmente para partes com recursos limitados. Ao oferecer autenticação técnica sem custos notariais, amplia o leque de meios probatórios no processo civil. Ainda assim, sua eficácia depende da aceitação judicial e da capacidade da parte de contextualizar juridicamente a prova. Sem narrativa clara e domínio técnico, o conteúdo pode ser desconsiderado. Em síntese, trata-se de uma ferramenta útil — mas que exige uso estratégico.

Chegamos ao fim de mais uma edição. A Jus Civile é construída semanalmente com rigor técnico e dedicação editorial. Se você gostou deste conteúdo, compartilhe com outros profissionais da área. A sua recomendação é valiosa para manter este projeto ativo e cada vez mais relevante para a comunidade jurídica. Nos vemos na próxima semana! 🦉

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