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Jus Civile #43

Nem todo conhecimento pesa. Alguns impulsionam. Entre petições, prazos e protocolos, há espaço para algo que nos move: a busca por compreender melhor o que fazemos — e por que fazemos. Que esta leitura amplie não só seu repertório jurídico, mas também suas perspectivas sobre o Direito.
Institutos
Abuso de direito
Nem todo exercício de um direito é legítimo. Em certas circunstâncias, o que parece autorizado pelo ordenamento jurídico pode, na verdade, configurar um ilícito civil. Essa é a provocação que o Art. 187 do Código Civil nos traz ao estabelecer que comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.
O dispositivo incorpora à teoria das obrigações um freio ético que impede o uso distorcido de prerrogativas legais. Trata-se de uma ruptura com o formalismo jurídico clássico, que antes reconhecia o ato lesivo apenas quando violava uma norma. A partir da positivação do abuso de direito, a ilicitude passa a ser reconhecida inclusive na forma excessiva, desproporcional ou maliciosa do exercício de um direito subjetivo.
A doutrina tem classificado o abuso de direito em modalidades como:
Abuso por fim antissocial (quando o titular visa apenas prejudicar terceiros);
Abuso por excesso (quando o exercício extrapola o necessário, útil ou proporcional);
Abuso por desvio de finalidade (quando o direito é usado fora do seu escopo legítimo).
Um exemplo prático: o locador que ajuíza ação de despejo apenas para constranger o inquilino que discorda de aumentos abusivos; ou o coproprietário que, sem necessidade, nega sistematicamente autorização para obras essenciais em um imóvel comum. Em ambos os casos, embora exista, em tese, respaldo jurídico para a ação, a conduta ultrapassa os limites da boa-fé e da função social.
A jurisprudência tem reforçado esse entendimento, reconhecendo o abuso de direito como causa autônoma de responsabilização civil, mesmo que o agente tenha atuado dentro dos “limites formais” da lei.
📌 Análise crítica: a grande virtude — e também o risco — do instituto do abuso de direito está em sua natureza aberta e valorativa. Ao deslocar o foco do ato em si para a forma e finalidade com que é exercido, o ordenamento amplia o campo de proteção contra condutas formalmente lícitas, mas materialmente injustas. No entanto, essa abertura interpretativa exige cautela: ao conferir ao julgador o poder de definir os “limites invisíveis” do direito, corre-se o risco de insegurança jurídica e decisões baseadas em percepções subjetivas de moralidade. O desafio está, portanto, em equilibrar a proteção contra desvios com a previsibilidade das relações jurídicas, evitando que o instituto se torne pretexto para restringir direitos legítimos sob fundamentos vagos ou ideológicos.
Assim, mais do que um dispositivo de exceção, o Art. 187 representa um convite constante à ponderação. Cabe ao jurista, diante de cada caso concreto, identificar quando o exercício de um direito ultrapassa sua função legítima e se converte em instrumento de dano. O abuso de direito, afinal, não nasce do direito em si — mas da forma como ele é instrumentalizado. Reconhecê-lo é preservar a integridade do sistema e reafirmar que o Direito não pode ser escudo para injustiças.
Latim jurídico
Acessio possessionis
Acessio possessionis significa "acréscimo de posse". Trata-se do instituto que permite ao possuidor atual somar o tempo de posse exercido por seu antecessor, desde que haja continuidade e identidade de natureza da posse — especialmente com vistas à usucapião.
A previsão legal está no Art. 1.243 do Código Civil, que autoriza, por exemplo, o herdeiro a agregar ao seu próprio tempo de posse aquele exercido pelo autor da herança. A lógica jurídica por trás do instituto é a proteção da confiança e da estabilidade possessória em situações nas quais o exercício do domínio, embora não registrado, se dá de forma prolongada e legítima.
📌 Exemplo prático: imagine um pai que ocupa um imóvel rural de forma mansa e pacífica por 12 anos. Após seu falecimento, o filho assume o imóvel e continua exercendo a posse por mais 4 anos. Ainda que não haja escritura pública, a posse é contínua e com animus domini. Nesse caso, é plenamente possível invocar a acessio possessionis para computar os 16 anos de posse como fundamento para uma ação de usucapião extraordinária.
A acessio possessionis, portanto, é um recurso técnico valioso que reconhece a realidade fática e social da posse prolongada, conferindo estabilidade jurídica a situações em que a propriedade formal não acompanha a ocupação legítima consolidada ao longo do tempo.
Atualidades
Domicílio Judicial Eletrônico (DJE) e obrigatoriedade do cadastro para empresas

Imagem: CNJ
A implantação do Domicílio Judicial Eletrônico (DJE) no Poder Judiciário brasileiro representa mais do que uma modernização dos meios de comunicação processual. Trata-se de uma reconfiguração das dinâmicas de responsabilidade na relação entre partes e juízo. Ao centralizar, de forma digital, o envio de citações e intimações por todos os tribunais brasileiros, o sistema transfere ao jurisdicionado o ônus de estar vigilante — e conectado.
Desde 16 de maio de 2025, passou a ser obrigatório para todas as pessoas jurídicas manter cadastro ativo no Domicílio Judicial Eletrônico (DJE), plataforma que concentra as citações e intimações processuais expedidas por todos os tribunais brasileiros (exceto o STF). A exigência decorre da Resolução CNJ nº 569/2024, e a omissão no cumprimento dessa obrigação pode gerar consequências jurídicas relevantes.
Caso a empresa não confirme o recebimento da citação no prazo de 3 dias úteis ou da intimação em até 10 dias corridos, os efeitos jurídicos serão produzidos automaticamente, como se houvesse ciência real. E mais: o descumprimento injustificado pode ensejar a aplicação de multa de até 5% do valor da causa, por ato atentatório à dignidade da Justiça — conforme previsto no §1º do Art. 246 do CPC.
A medida, que visa aumentar a celeridade e a eficiência do Poder Judiciário, também impõe novas responsabilidades operacionais aos empresários, sobretudo no que se refere à vigilância sobre prazos e à organização interna. É preciso não apenas cadastrar um e-mail válido, mas também garantir que o fluxo de comunicação seja monitorado de forma contínua e eficaz.
Isso desafia a lógica tradicional da intimação pessoal e da certidão do oficial de justiça como marcos de segurança processual, exigindo das empresas protocolos internos de controle diuturno, sob pena de responsabilidade objetiva. Embora a proposta do DJE traga evidentes ganhos em celeridade e racionalização de custos para o Judiciário, seu impacto sobre os jurisdicionados — especialmente as empresas de médio porte, sem estrutura jurídica interna robusta — ainda carece de amadurecimento. O risco é transformar a informatização em fator de desequilíbrio processual, deslocando o foco da prestação jurisdicional para armadilhas formais de ciência presumida.
No contexto dessa transição digital, o papel da advocacia preventiva se intensifica. Cabe ao profissional do Direito atuar como agente de adaptação, orientando clientes quanto aos deveres decorrentes do novo sistema e promovendo ajustes estruturais que garantam a efetividade da defesa. A tecnologia processual, por si só, não é neutra: ela carrega consigo uma nova gramática de deveres e prazos — e sua compreensão crítica é essencial para a prática jurídica contemporânea.
InovAção
Agentes personalizados no Gemini: conheça os Gems e veja como eles podem auxiliar a sua prática jurídica
A inteligência artificial generativa continua a moldar o panorama tecnológico, e o Google apresenta sua mais recente aposta com o Gemini, sucessora do Bard. Dentro desta nova plataforma, os chamados "Gems" emergem como uma funcionalidade promissora: agentes de IA personalizados, configuráveis pelos usuários para executar tarefas específicas a partir de comandos predefinidos.
O conceito ecoa a ideia dos GPTs personalizados, já presentes no ChatGPT, oferecendo a possibilidade de criar assistentes virtuais especializados. Imagine um Gem treinado para identificar cláusulas abusivas em contratos consumeristas, outro para gerar notificações extrajudiciais com a precisão da linguagem jurídica, ou ainda um focado em rastrear e indicar jurisprudência relevante em casos de responsabilidade civil. A expectativa reside em um comportamento consistente e alinhado às instruções fornecidas.
Contudo, é fundamental temperar o entusiasmo inicial com uma análise realista do estágio atual dos Gems. Apesar do nome sugestivo, a personalização ainda se mostra incipiente, baseada em descrições comportamentais básicas, sem acesso a memória de longo prazo robusta ou integração nativa com bancos de dados jurídicos nacionais. A ausência de suporte para workflows complexos, como a combinação de múltiplas etapas condicionais ou a filtragem refinada de jurisprudência por tribunal ou matéria, também limita sua aplicação em cenários jurídicos mais intrincados.
Na prática, os Gems demonstram maior utilidade em tarefas padronizadas e repetitivas, como a sumarização de documentos, a reescrita de textos com ajustes de tom ou a realização de análises preliminares de conteúdo. No entanto, sua capacidade de impactar profundamente o dia a dia da advocacia — especialmente em contextos que demandam densidade técnica e argumentativa sofisticada — permanece restrita. A lacuna na integração com bases legais brasileiras e a ainda limitada compreensão das nuances da linguagem jurídica pelo modelo exigem cautela em sua utilização.
A principal reflexão que os Gems nos traz reside na necessidade de equilibrar a promessa de automação com a transparência quanto às reais capacidades da IA. Em um mercado jurídico que valoriza precisão, contexto e solidez argumentativa, a personalização oferecida pelos Gems ainda se apresenta como um protótipo interessante — com potencial para auxiliar em tarefas específicas, mas longe de substituir o raciocínio jurídico crítico e a expertise que a advocacia exige.
Em suma, os Gems representam um passo relevante na evolução da IA aplicada ao Direito, sobretudo em atividades ligadas à produção de conteúdo, automação leve e demandas administrativas. Para a complexidade da prática contenciosa, contudo, ainda figuram como assistentes em desenvolvimento — ferramentas de apoio valiosas, mas que requerem constante supervisão e o discernimento criterioso do profissional jurídico.
Chegamos ao fim de mais uma edição da Jus Civile, com a convicção de que o Direito bem discutido é o primeiro passo para uma prática jurídica mais consciente e transformadora. Se este conteúdo lhe foi útil, compartilhe a newsletter com colegas de profissão, grupos de estudo ou aquele contato que valoriza o rigor e a atualidade do debate jurídico. O conhecimento, afinal, só cresce quando é compartilhado. Nos vemos na próxima semana! 🦉
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